Nota: Os dados da postagem são partilhados com o texto coletivo assinado por Rogge, J.H.; Schmitz, P.I.; Vargas, J.A.; Beber, M.V.; Ferrasso, S.; Clos, D.A. 2020. A grande estância de Yapeyú. Pesquisas, Antropologia 75. Os dois textos foram criados paralelamente.
Em Antropologia 75 (2020) está o texto inteiro,
Introdução
No século XVII os jesuítas espanhóis fundaram 60 reduções de nativos na bacia do Rio da Prata e um colégio em cada cidade dos colonizadores, dois em Buenos Aires. Os jesuítas portugueses, nos séculos XVI e XVII, fundaram 60 missões indígenas no Estado do Brasil, mais 29 no Estado do Maranhão e Grão-Pará, além de colégios nos principais assentamentos da colonização portuguesa.
A sustentação principal das obras vinha de fundações e mercês reais ou provinciais, de numerosos legados testamentários e de esmolas ocasionais. Mas só com isto as obras não chegariam a viver, porque os serviços, tanto nas missões, como nos colégios, eram gratuitos e envolviam grande número de pessoas. Para a subsistência era necessário criar recursos próprios através do cultivo de plantas com grande produtividade e da criação de rebanhos de animais, que fornecessem alimentos diretamente utilizáveis, ou elementos passiveis de elaboração para consumo posterior ou comercialização. Da comercialização vinham os recursos para comprar bens não comestíveis, mas necessários para o trabalho, a casa, o vestuário, o templo, o culto, a festa, as viagens.
Sucessivamente libero quatro postagens relacionadas com estas instituições:
1. A estância de criação de gado para alimento dos moradores, em reduções da Província do Paraguai;
2. As estruturas construídas da estância missioneira de São Sebastião, em Uruguaiana;
3. As estâncias de produção de bens para o mercado nas instituições de Córdoba, (Argentina) e de produção variada de bens para consumo e venda na Fazenda Santa Cruz, do colégio do Rio de Janeiro;
4. Bolichos coloniais na Estância de Yapeyú, em Uruguaiana.
Dou mais importância à primeira e segunda postagens; uso a terceira para contraste; a quarta, como reaproveitamento de prédios missioneiros, em Uruguaiana.
As estâncias da Argentina e as fazendas do Brasil são administradas por jesuítas, seguem orientações comuns, mas divergem em bastantes aspectos. Talvez o mais importante seja a mão-de-obra, que na estância missioneira é toda indígena em regime de trabalho comunitário, as do item 3 só usam mão-de-obra escrava, ou contratada.
As estâncias na Província do Paraguai e a estância de Yapeyú
A estância de criação de gado não é o único e mais importante sustento das reduções na Província do Paraguai. Cada um dos caciques da redução dispunha de um pedaço de chão destinado a produzir o sustento básico para as famílias que o seguiam; é o chamado Avambaé, propriedade do homem, em cuja produção eles ocupavam alguns dias da semana, ou temporadas durante o ano. Ao lado do Avambaé existia o Tupambaé, o bem comunitário, no qual o cacique e seguidores trabalhavam outros dias da semana, ou temporadas durante o ano. Do Tupambaé fazia parte o erval nativo e o cultivado, a plantação de algodão para fabricação de tecido, a de cana para produção de açúcar, a de tabaco para o fumo; a estância para carne, leite, couros, lã, o transporte e a tração; mais os serviços a eles relacionados.
Depois de concluir o estudo das estruturas materiais da grande Estância de Yapeyú, conservadas no município de Uruguaiana, cremos existirem elementos adequados para dizer o que era a estância missioneira, quem nela morava, como se administrava e o quê e para quem produzia. Vejamos:
A redução de Yapeyú foi criada em 1627 na margem direita do rio Uruguai, como a mais meridional delas. Sua estância de criação de gado estendia-se dali para o sul, por ambas as margens do rio, cobrindo uma superfície de uns quatro milhões de hectares de campo. Sua estruturação começou em 1657, com a criação do primeiro casco, e se desenvolveu até 1768, quando os jesuítas foram retirados da administração, e os índios missioneiros, que nela trabalhavam, ficaram sem lugar definido na estrutura social surgida.
O objetivo da estância era reunir, criar e administrar animais, principalmente vacas para alimento dos nativos da missão, que chegaram a somar 8.000 pessoas; ela também fornecia animais para outras reduções, quando necessitadas. Com o tempo ela acrescentou postos para criação de bois de serviço, vacas de leite, cavalos, mulas e ovelhas.
Para isto se criavam sedes (cascos), onde eram levantadas estruturas para habitação dos encarregados e para o manejo dos animais. No século XVII os animais da estância vinham da caça do gado selvagem, que se tinha multiplicado para milhões em grandes vacarias, produzidas intencionalmente pelo homem largando reprodutores em espaços desabitados. A partir do século XVIII, com o esgotamento das vacarias por exploração desordenada, animais recolhidos foram confinados em espaços limitados, onde se podia controlar a reprodução e regularizar a produção para a redução.
As estruturas que se foram levantando compunham-se de moradias para os nativos com suas famílias, de moradia para o administrador jesuíta (um irmão, às vezes mais um padre), de capela para os serviços religiosos mais o cemitério, de currais ou mangueiras de pedra, de potreiros fechados por taipas ou estacadas, e de campos extensos onde o gado pastava livremente. Com certa regularidade os animais tinham de ser juntados em rodeios para acostumá-los com a presença do homem, para contar suas crias, controlar suas doenças, separar lotes para o envio à redução ou para venda a outras missões. Havia capatazes para diversas obras, mas a coordenação geral competia ao irmão.
Além dos cascos, onde se concentravam pessoas e atividades, existiam postos avançados, principalmente nos limites da estância por onde o gado poderia fugir ou ser desviado, e nos passos dos rios e arroios, para facilitar sua transposição, nos quais também moravam famílias, com um capataz para coordenar as atividades e atender as necessidades dos moradores.
Em nossa pesquisa foram estudados os cascos seguintes: Santiago, mais próximo ao rio Ibicuí, criado em 1657; São José, perto do rio Quaraí, criado em 1694; São Sebastião e Redentora, no alto rio Ibirocai, criados ao redor de 1730. As principais estavam ao longo do ‘Caminho Real’, em cuja boca estava o Aferidor. Provavelmente eles atuaram até a expulsão dos jesuítas. (Ver figura 1).
Figura 1. Área da pesquisa.
Nos estudados percebe-se uma evolução construtiva, que acompanhou a de algumas, não todas, as sedes de reduções. No primeiro casco (Santiago), as moradias ainda tinham paredes de adobe e telhado de palha; os currais eram circundados por estacadas reforçadas com grandes blocos de pedra; os potreiros eram fechados, complementarmente, por arroios, por valos cavados e por taipas de pedra. No casco de São José, as moradias junto aos currais continuam sendo de adobe, e os currais são de pedra. As habitações da administração são de pedra, e cobertas com telha-canoa. Nos cascos de São Sebastião e da Redentora as moradias são de pedra trabalhada, a cobertura de telha-canoa, as portas e janelas encimadas por arcos romanos ou rebaixados, sinal da renovação arquitetônica das missões, no século XVIII.
A estância era responsabilidade do Cabido missioneiro. A execução era do pároco da redução e de seu companheiro, o qual visitava periodicamente o campo, onde um irmão jesuíta coordenava as atividades.
Somando cascos e postos, na estância podiam morar até umas 170 pessoas, entre homens, mulheres, jovens, adolescentes e crianças. Eles não recebiam salários porque faziam trabalhos comunitários do Tupambaé e eram abastecidos pela sede naqueles bens que não produziam localmente. Sob todos os pontos de vista eles continuavam membros da missão e eram convidados a seguir seus horários, ritos e costumes, mesmo na ausência do padre e do irmão. Os religiosos tinham a moradia separada dos índios e sujeita a clausura eclesiástica.
A estância, apesar de sua grande extensão e reunião de número considerável de animais, nunca foi grande negócio, porque sempre esteve sujeita a peripécias (secas, gafanhotos, zoonoses, ataques de índios seminômades, conflitos de fronteira) e grandes solicitações tanto da redução como do governo provincial. Só as construções das estâncias de São Sebastião e da Redentora chegaram a ter algum estilo. Mas, sem a estância, a redução não teria sobrevivido.
Com a retirada dos jesuítas, em 1768, e a introdução do novo estilo de propriedade e de manejo, não mais comunitário, mas capitalista, o índio ficou desempregado e sem experiência para competir no mercado de trabalho. As comunidades missioneiras, que mantiveram o velho sistema no território de Missões, levaram mais algumas décadas para desaparecer.
ANTIGAS ESTÂNCIAS DE JESUÍTAS 2
As estruturas construídas da estância São Sebastião, em Uruguaiana
Vou mostrar a estrutura do casco da estância São Sebastião. Ela começou ao redor de 1730 e continua habitada e funcionando até hoje, embora sob administrações diferentes: primeiro missioneira, depois espanhola, agora brasileira. Os edifícios básicos que mostro ainda são missioneiros e apresentam elementos arquitetônicos trazidos por irmãos e padres jesuítas formados na Itália, na Espanha e na Alemanha.
Veja localização na figura 1.
Figura 2. Croqui da estância São Sebastião feito por Jairo Rogge.
Figura 3. Estância São Sebastião, setor central: residências e serviços.
Quadrado com um só acesso por um portão. Os prédios missioneiros em pedra canteada, sobreposta sem argamassa e sem pintura, com telhado em uma água voltada para o centro, onde existe um poço ou cisterna, que recolhe água do telhado. As construções posteriores são em tijolo e o telhado em duas águas.
Figura 4: Estância São Sebastião, setor dos coordenadores religiosos.
Prédio em pedra canteada e coberto por telha-canoa. Ele era a residência do irmão e do padre e estava separado do setor de moradias e serviços dos trabalhadores e ainda resguardado por muros. Ele tinha seu próprio poço ou cisterna. Nele aparece bem a arquitetura renovada, na qual também se construíram as igrejas missioneiras do período.
Figura 5: Estância São Sebastião, a igreja.
Prédio em pedra canteada e originalmente coberto por telha-canoa. Tinha um portão arqueado em ambas as extremidades, janelas dispostas simetricamente em ambos os lados e nenhuma repartição interna. Serviria de igreja para a população da estância e de postos avançados, em suas missas e devoções.
Para melhor perceber a identidade da estância missioneira, no próximo item se disponibilizam dados sobre outras estâncias, mantidas também por jesuítas na mesma época, as estâncias jesuíticas de Córdoba, na Argentina e a fazenda Santa Cruz do Rio de Janeiro.