6. Morar dentro do chão.
Nossos projetos no Planalto Meridional
A casa subterrânea era uma habitação comum em diversas partes do mundo, em certo período da história humana. Em princípio, era uma adaptação a ambientes frios, mas também podia tornar-se um identificador cultural: nós, os que moramos sob o chão.
No Planalto Sul-Brasileiro, onde existem milhares de casas subterrâneas, elas são associadas ao povoamento pré-colonial de uma população do tronco linguístico Jê, família linguística Macro-Jê, cujos descendentes coloniais falavam Kaingang, Xokleng ou Ingaín. Os de língua Kaingang predominavam no Sul e no Oeste das terras altas, os de língua Xokleng, na parte mais alta e Leste. O pequeno grupo Ingaín desapareceu rapidamente e deixou pouca informação.
Além de diferenças linguísticas, os grupos também podiam ser distinguidos por outros elementos da cultura. Usando como discriminador a cerâmica produzida, os arqueólogos separam um grupo que chamam de Tradição cerâmica Taquara, bastante comum na área ocupada pelos de língua Kaingang, e um grupo de Tradição cerãmica Itararé, comum na área ocupada pelos de língua Xokleng. Eles também registram diferenças no tratamento dos mortos; no primeiro grupo, deposição ou enterramento dos mortos; no segundo, a presença de cremação dos corpos.
Os linguistas concluíram que a origem desta população é o Brasil Central, entre Minas Gerais e Goiás, donde se teriam começado a deslocar para o Sul ao redor de mil anos antes de Cristo, ou três mil anos atrás. Os arqueólogos costumam percebê-los quando já estão bem instalados, tanto no território da Tradição Taquara como no da Tradição Itararé, a partir de quinhentos anos depois de Cristo, isto é mil e quinhentos anos depois. Os assentamentos do primeiro período são difíceis de identificar por não terem cerâmica, nem casas subterrâneas.
Nossos projetos buscaram cobrir amplos espaços de ambas versões cerâmicas, no sentido de captar suas variações culturais e cronológicas
O primeiro contato com as casas subterrâneas ocorreu no município de Caxias do Sul e comunas vizinhas, na década de 1960 e consistiu no levantamento de sítios, coletas superficiais, escavações sistemáticas e datações. Dele resultou a caracterização inicial da cultura da Tradição cerâmica Taquara atinente às casas e seu agrupamento, aos túmulos de seus mortos, à cerâmica doméstica, aos artefatos líticos e à cronologia das instalações. Também se buscou a caracterização e história dos índios Kaingang do período colonial, considerados seus descendentes. Desse tempo merece destaque Fernando La Sálvia por suas formulações para as casas e Ítala Irene Basile Becker pela recopilação dos dados sobre os índios Kaingang coloniais.
Depois dessa pesquisa, a equipe trabalhou durante três décadas nos cerrados do Brasil tropical. Ao voltarmos às casas subterrâneas na área da Tradição Taquara, dirigimos nossa atenção, primeiro, ao município de Vacaria, onde, além de pequeno levantamento, escavamos dois grandes sítios como teste para as formulações produzidas em Caxias do Sul. Acrescentamos o estudo de um abrigo funerário junto a uma cascata, no qual tinham sido depositados, superficialmente, dezenas de corpos correspondentes a ambos sexos e todas as classes de idade de uma comunidade indígena local. Assumiram destaque no projeto os biólogos que caracterizaram essa população.
Continuando nossa cobertura do planalto rio-grandense voltamos a atenção ao município de São Marcos, localizado entre Vacaria e Caxias do Sul. Fizemos levantamento sistemático em toda a superfície do município, realizamos coletas superficiais, cortes estratigráficos e escavações sistemáticas buscando entender, agora, a distribuição das diversas categorias de sítios no espaço geográfico. Como mais importante contribuição destaco a confirmação de que os pequenos montículos alongados junto às casas são túmulos individuais de moradores. Eles se multiplicaram na medida em que faltavam abrigos próximos, nos quais normalmente se guardavam os corpos dos falecidos. Mesmo assim, localizamos no município vários pequenos abrigos rochosos, sempre com poucos (um ou dois) mortos neles sepultados.
Até aqui trabalhamos no Rio Grande do Sul, em área da Tradição cerâmica Taquara. O seguinte projeto cobriu o município de Taió, no vale do rio Itajaí, em Santa Catarina, área da Tradição cerâmica Itararé. No município, ao lado de numerosos assentamentos com pontas de projetil da tradição Umbu, estudamos um sítio com 12 casas subterrâneas, nas quais predominam datas do século VI ao VIII de nossa era; elas coincidem com as mais antigas do Rio Grande do Sul. Mas as depressões das casas são mais rasas, os materiais estão do lado de fora delas e não há cerâmica, de nenhuma das tradições.
Os nove anos do seguinte projeto, no município de São José do Cerrito, no planalto de Lages, proporcionaram dados mais sólidos sobre a história antiga do Jê no Sul do Brasil. No projeto testamos, com alguma sorte, as afirmações dos linguistas sobre a origem e desenvolvimento do grupo Jê do Sul. Debaixo de uma casa subterrânea geminada encontramos um assentamento isolado sem casa subterrânea e sem cerâmica, datado do quinto século antes de Cristo, i. é, apenas 500 anos depois da pleiteada primeira migração do Brasil Central (Figura 14). Depois, no Rincão dos Albinos, nos deparamos com um assentamento de 107 casas (Figura 6), de características e datas semelhantes às de Taió. Nos séculos XII e XIII apareceram casas muito grandes acompanhadas de potentes aterros funerários (Figuras 1 a 5), ainda com pouca cerâmica e de pequenas dimensões, parcialmente moldada em cesto (Figura 13). A partir do século XIV elas foram substituídas por pequenas casas agrupadas ou geminadas (Figuras 7 a 11), com vasilhas de barro cada vez mais abundantes e maiores da Tradição Itararé (Figura 12), indicando aumento de cultivos. Esse povoamento indígena durou até a primeira metade do século XVII, quando os paulistas começaram a percorrer e, finalmente, dominar a região. Acredita-se que foi desse planalto que se originaram os Xokleng (Botocudos) encontrados pelos colonizadores alemães de Blumenau.
A pesquisa foi exitosa e forneceu dados confiáveis para todo o período de povoamento indígena pleiteado pelos linguistas, desde perto da chegada até sua expulsão pelos bandeirantes paulistas.
A cultura das casas subterrâneas.
As famílias Jê que se deslocaram dos cerrados quentes trocaram um ambiente rico em frutas e sementes por campos frios de recursos escassos antes da chegada do pinheiro; talvez a maior riqueza do ambiente fossem os butiazais, dos quais sobrou uma amostra nos campos de palmas. Em pequenos grupos familiares se manteriam dispersos e móveis, sem casas subterrâneas, sem cerâmica e sem cultivos. Nas estações frias talvez se refugiassem em abrigos rochosos existentes junto às altas nascentes. Eles se manteriam como caçadores e coletores móveis durante séculos até melhorarem os recursos com o aparecimento e a multiplicação dos pinheiros em meados do primeiro milênio. Deles estudamos um assentamento do século quinto antes de Cristo nos Campos de Lages.
Percebemos sua mudança no século VI de nossa era quando, no planalto de Santa Catarina, estudamos aglomerados de casas subterrâneas muito rasas, ainda sem cerâmica, primeiro em Taió e, depois, em Rincão dos Albinos. Eram o resultado de acampamentos sucessivos junto a dois antigos capões de pinheiros, onde as famílias indígenas se reuniam para colher o pinhão que amadurece no outono. Os capões de pinheiros ainda eram poucos, razão de sempre voltarem aos mesmos. A colocação das choupanas de piso rebaixado no mesmo lugar resultou um denso aglomerado de depressões sobrepostas ou invadidas.
Nesse mesmo tempo já temos, no planalto de Caxias do Sul, casas subterrâneas grandes e fundas e cerâmica Taquara bem caracterizada
Com a expansão dos pinheirais sobre os campos, a partir do ano mil vão-se multiplicar as aldeias de casas subterrâneas que estudamos em Santa Catarina, em território da Tradição Itararé, e no Rio Grande do Sul, em território da Tradição Taquara.
A casa subterrânea para a caracterizar o assentamento em ambas regiões. Ela é o lugar da moradia e dentro dela permanecem os pequenos fogões com a panelas quebradas e os restos de alimentos. Também alguns rudes instrumentos de pedra. A casa pode ser grande, funda e abrigar toda a comunidade; ou pequena, unifamiliar, agrupada com outras iguais; ou ainda geminada, duas habitações sob o mesmo teto abrigando famílias aparentadas. Os assentamentos sugerem que as comunidades locais eram pequenas.
A casa era escavada em terreno firme na encosta suave de coxilhas, onde a água das chuvas escorre facilmente, mas perto de uma nascente ou banhado de altura, onde têm acesso a água. O telhado da casa podia ser em colmeia quando pequena; em chapéu chinês quando grande. A escavação das casas grandes exigia a colaboração de toda a comunidade e podia levar muitas semanas ou meses de construção. As casas provavelmente eram estacionais, sendo ocupadas e desocupadas diversas vezes, como mostram as sucessivas camadas de terra que acabaram por entulhá-las.
Os instrumentos domésticos eram predominantemente panelas de barro que, na Tradição Taquara, têm paredes mais grossas e retas, exibindo, muitas delas, as rugosidades provenientes da cesta em que foram moldadas. Na Tradição Itararé, as paredes são mais finas, levemente infletidas, escurecidas e brilhosas a ponto de refletir a luz. Elas costumam ser pequenas e parecidas, com capacidade não superior a dois litros. Fabricadas pelos membros da casa, eram utilitárias; externamente se cobriam de fuligem e internamente conservavam crostas dos alimentos. Mesmo quebradas, permaneciam nos fogões em que tinham sido usadas.
Outros instrumentos utilitários eram feitos em rocha local, a maior parte simplesmente lascada para dar forma e gume, algumas polidas criando uma lâmina de machado, uma mão-de-pilão ou um pilão.
As pequenas aldeias se dispersavam pelo território, cada uma com seus pinheirais, suas matas para lenha, madeira, frutas, sementes e animais; seus campos com butiazais e, no final, também seus pequenos cultivos de milho, feijão, abóbora e inhame.
No período colonial já não se percebem essas estruturas construtivas e também se perde a cerâmica. Não conhecemos os pormenores da mudança; apenas sabemos que são diferentes.
1. A paisagem das casas subterrâneas: o campo com pinheiros; a casa enterrada com 20 m de diâmetro e 7 de profundidade; atrás, o aterro para cremar os mortos, com 30 m de diâmetro e 3 m de altura.
2. Escavando o piso da casa.
3. As cores do solo indicam períodos de ocupação.
4. Este aterro funerário: este mede 20 m de diâmetro e 2 m de altura.
5. Escavando o aterro da figura 1.
6. Aglomerado de casas subterrâneas no Rincão dos Albinos; cada depressão é uma casa.
7. Casa geminada em São José do Cerrito.
8. Escavando uma casa de tamanho médio em São José do Cerrito.
9. Material no piso da casa acima.
10. Um pequeno fogão com a panela quebrada, no mesmo piso.
11. Também havia fogões no pátio da casa.
12. Uma panela da Tradição Itararé.
13. Uma panela da Tradição Taquara.
14. O fogão do sítio datado do século V antes de Cristo.
15. A equipe de 2016.
Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz
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