sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Eu, o IAP e as nozes: apontamentos de uma trajetória acadêmica em construção



 Me chamo Jefferson Aldemir Nunes, e vim refletir um pouco sobre meu caminho acadêmico até aqui, e como ele foi marcado diretamente pela passagem pelo IAP. Iniciei minha trajetória acadêmica na História no semestre 2014/1. Ainda imaturo no mundo acadêmico, tive contato com as aulas dos professores Jairo Henrique Rogge e Marcus Vinicius Beber, de Arqueologia e História Antiga Afro-Asiática, respectivamente. 

Isso abriu um novo mundo para mim, e os textos que li nesse semestre, sobre o tema, me despertaram dúvidas, que sempre compartilhava com os professores. Antes do final do primeiro semestre, o professor Rogge me convidou para conhecer o IAP, que estava se mudando da sua antiga sede para o campus de São Leopoldo, e a possibilidade de virar bolsista da instituição.

Entre salas com caixas cheias de livros, peças de computador e móveis ainda não colocados em seu lugar, comecei a ajudar o professor Jandir Damo a guardar e organizar os livros na rica biblioteca do IAP. E foi assim, movendo volumes do enorme e pesado L'OsservatoreRomano, e outros periódicos, que dei minha entrada para o mundo da pesquisa acadêmica. Já no começo de 2014/2 fui efetivado como bolsista da instituição, sob orientação do professor Ignácio Schmitz, e teria as tardes ocupadas pela atuação ali.

Recebi, então, os clássicos textos da revista Pesquisas, sobre a arqueologia do Rio Grande do Sul, um rito de passagem obrigatório para centenas de bolsistas que passaram pelo IAP. Visando meu aprendizado na área, o professor Schmitz me forneceu uma coleção cerâmica da população Jê, advinda do Paraná. Foi nela que aprendi as bases do desenho e análise de peças cerâmicas, o que rendeu minha primeira apresentação de trabalho e meu primeiro texto acadêmico, escrito junto de meu orientador. 

Os meus verões seriam, a partir de então, permeados por viagens a São José do Cerrito, no planalto de Santa Catarina, para escavação nas chamadas Casas Subterrâneas das populações Jê. Essa foi minha experiência direta com a prática de campo arqueológico, e que me forneceu uma visão mais ampla sobre toda a disciplina, percebendo como a Arqueologia e a História vão muito além de materiais de laboratório. 

O esforço, a sujeira, os mosquitos, o calor, a umidade, a convivência com colegas de origens distintas da nossa, a chuva que impede temporariamente a escavação e nos obriga a trabalhar no barro. Também a comida, a hospitalidade local, as risadas, as novas descobertas, as conversas e aprendizados, as belas paisagens e contato com a natureza; tudo isso faz parte, também da pesquisa. Os três verões em que pude participar das escavações, assim, vão se manter como parte fundamental da minha constituição enquanto pesquisador, e do acadêmico e ser humano que estou me tornando.




 

FOTO 1 – Legenda: Eu no buraco: em busca de vestígios arqueológicos dos grupos Jê (Registro de Vagner Perondi)

 

A partir de 2015, passei para o projeto que estava sendo iniciado no IAP, que foi focado no estudo do Guarani no Vale do Rio dos Sinos, a partir da retomada de coleções antigas disponíveis no próprio IAP e no MARSUL. Focando em sítios do Alto Vale do Sinos, na região de Santo Antônio da Patrulha e Caraá, iniciei uma pesquisa que daria uma guinada na minha trajetória acadêmica.

Durante o estudo de sete sítios, que seriam a base dos meus trabalhos até 2019, senti a necessidade de ampliação dos debates, para compreender melhor os assentamentos a partir de suas relações históricas. Isso levou à exploração, no projeto, de textos jesuítas reunidos em trabalhos de Serafim Leite, e que trouxeram uma visão mais ampla sobre o avanço de jesuítas e outros europeus no litoral sul brasileiro, e de seu impacto para os grupos indígenas na região. Além disso, essa leitura permitiu a visualização de certos costumes que poderiam ser pensados, em analogia, para explicar traços dos assentamentos no Vale do Sinos não diretamente percebidos no registro arqueológico. 

Isso é importante, visto que a Arqueologia, como sempre diz o professor Marcus Beber, é, essencialmente, uma ciência multidisciplinar. A interdisciplinaridade, portanto, é muito bem vinda e só tem a contribuir para o aprofundamento da visão sobre o objeto de estudo. Construir pontes, e não muros entre as disciplinas, eis um grande aprendizado que tive no IAP.

Essas discussões levaram à construção de meu trabalho de conclusão de curso, de 2019, que foi a culminação de todos os anos de trabalho como bolsista no IAP, e ao texto final do projeto, publicado coletivamente na revista Pesquisas.




FOTO 2 – Legenda: Vale do Rio do Sinos, e indicação dossítios por mim estudados

 

No final desse ciclo (tanto na pesquisa no IAP, quanto na graduação), eu estava buscando um tema para o meu projeto de mestrado. Minha intenção inicial era analisar a rica coleção de Itapiranga, um grande banco de cerâmicas e líticos presentes no acervo da instituição, e que nunca foi explorado em sua totalidade. Minha ideia de unir Arqueologia e História, por meio de textos de jesuítas, assim como fiz no TCC, porém, não seria possível, visto que não havia missões dos padres da Companhia

Foi nessa situação que me deparei com dois documentos datilografados na minha escrivaninha, que vieram do acervo do padre Luiz Gonzaga Jaeger, e que foi legado ao IAP após o falecimento dele, em 1963. Esse material, que havia ficado muito tempo sem análise, começou a ser catalogado por um bolsista do IAP em 2019, que me entregou as duas cartas durante a escrita da minha monografia, que já tangenciou a ação missionária jesuítica, achando que poderia me ser útil de alguma forma.

Ao olhar com mais atenção os papéis, percebi que eram cópias de duas cartas ânuas, que haviam sido datilografadas e estavam cheias de rabiscos e correções à caneta. Junto a isso, algumas páginas fotocopiadas dos documentos originais, carimbados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Descobri que eram duas cartas advindas da tradicional Coleção de Angelis, e foram escritas em 1615 pelo jesuítaRoque Gonzáles de Santa Cruz das missões do Paraná logo noinício desta frente missionária. Essas versões datilografadas eram acompanhadas por uma versão escrita do próprio punho de Jaeger, que deve ter transcrito manualmente os documentos antes de passar para a máquina datilográfica.

Sem nunca ter refletido sobre Gonzáles, fiquei curioso para saber quem era esse padre jesuíta que fora “martirizado” por indígenas Guarani, e que desperta, até os dias atuais, devoção. Entrei em contato, nesse momento, com uma rica história e trabalhos clássicos, que mostravam um jesuíta completo, predestinado para a santidade desde o nascimento, que preservou a inocência e cultivou as virtudes cristãs em nível heroico, mesmo diante do martírio

 


FOTO 3 – Legenda: Cartas ânuas datilografadas e trabalhadas pelo padre Jaeger

 

Foi a partir disso que resolvi seguir, e que desenvolvi, durante 2019 e 2021, minha dissertação, recém concluída.Agora, encerrando um novo ciclo, e iniciando o do doutorado, que se aprofunda em temas da Companhia, olho para trás, para o Jefferson ainda bastante imaturo que entrou em um IAP de mudança, e que estava começando uma nova história, dessa vez no campus, e percebo como meu amadurecimento, tanto como ser humano quanto como acadêmico, foi diretamente marcado por meu período na instituição.

Foi por meio da orientação do prof. Schmitz, e do contato e aprendizagem com tantos outros professores e colegas durante esse período, que pude desenvolver meus interesses de pesquisa, minha forma de expressão por meio da escrita acadêmica, e minhas ideias como profissional da área da História. Embora eu tenha, gradualmente, me afastado do tema arqueológico nos meus trabalhos, ele segue sendo uma fonte de inspiração e uma base para tudo o que eu faço, e a interdisciplinaridade segue sendo uma chave para minha forma de pensar.

O IAP segue comigo, assim como com centenas de outros profissionais que passaram por ele. Não só como lembrança, mas como ensinamento concreto da necessidade de seriedade para o estudo, do respeito aos povos originários de nosso país, e da constante busca pela excelência acadêmica. Mas, também, que sempre pode ser permeada por conversas mais descontraídas no cafezinho, junto de nozes colhidas pelo prof. Schmitz, alguns dos momentos onde mais aprendi no período no IAP. Afinal, boas conversas e nozes frescas também conduzem a bons trabalhos.


Texto e Imagens: Jefferson Aldemir Nunes




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