terça-feira, 5 de junho de 2018

Diário do primeiro curso de arqueologia: o sambaqui do Toral 51, em Paranaguá, PR, 1962

Ao mexer nas gavetas por ocasião da transferência do Instituto Anchietano de Pesquisas da cidade para o Campus da UNISINOS encontrei este importante documento da história da arqueologia brasileira, do qual transcrevo uma parte. O texto inteiro, com fotos, pode ser encontrado na página do Instituto Anchietano de Pesquisas sob ‘Dissertações e Teses’.

Organização: Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA), Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná, por iniciativa do Dr. José Loureiro Fernandes, com apoio da CAPES.

Etapas: O curso se desenvolveu em duas etapas: de 4 a 11 de julho na Universidade do Paraná, em Curitiba, com aulas teóricas e práticas, e de 12 a 31 de julho de 1962 em Paranaguá, com escavações no sambaqui do Toral.

O sítio: O sambaqui do Toral 51, situado a 17 km do Paranaguá, 2 km da praia atual. Medidas: 44 m de comprimento, 36 m de largura, 5,6 m de altura máxima. Situado num alagadiço, que tinha sido mar no tempo da construção do sambaqui. Na mesma região existem muitos sambaquis de tamanho parecido, inclusive um com 21 m de altura (Guaraguaçu). Diversos sambaquis estavam sendo escavados pela Universidade do Paraná. O sambaqui do Toral 51 nunca o tinha sido.

Metodologia: O sambaqui, que estava coberto por grandes árvores foi desmatado e limpo. O horário de trabalho era das 7 às 17 hs, todos os dias. Depois de limpa a superfície, foi escolhida uma área de 12 m de lado, no topo do sítio. Ao longo desta linha assentaram-se quadrados de 2 m de lado até a base do sambaqui, no lado leste, onde se abria a antiga baía. Remoção da camada de húmus (10 a 15 cm de espessura) pelos quadrados demarcados, separando-se o material com etiqueta especial. Remoção de uma camada de conchas de 15 cm de espessura nos mesmos setores e separação do material com etiqueta própria. Abertura de uma trincheira na base leste e outra na base norte, procurando alcançar o nível natural da água.

Em laboratório à noite, em domingos e em alguns outros dias o material escavado era lavado, numerado, fichado e classificado por equipes.

Os componentes da equipe:

Dra. Annette Laming-Emperaire, do Museu do Homem, em Paris, diretora do curso. Dava aulas teóricas e orientou a pesquisa.

Profa. Margarida Davina Andreatta, do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná. Era a auxiliar imediata da Dra. Annette em todo o trabalho.

Profa. Maria José Menezes, do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná. Tinha realizado anteriormente escavações em três sambaquis e acompanhado a Dra. Annette na pesquisa na Patagônia Chilena e na Terra do Fogo; também acompanhava outros trabalhos do CEPA.

Prof. Oldemar Blasi, do Museu Paranaense, professor de Arqueologia. Responsável pela seção de Arqueologia do Museu Paranaense. Fazia pesquisas com professores americanos (Wesley R. Hurt) e franceses (Josef Emperaire e Annette Laming-Emperaire) em Lagoa Santa, em José Vieira, em Macedo, e pesquisas próprias em Vila Rica no Guairá (ocupação espanhola) e em Estirão Comprido (tupi-guarani ou itararé).

Prof. Walter F. Piazza, professor de Antropologia Cultural, Etnografia e Antropologia Social na Faculdade de Filosofia da Universidade de Santa Catarina. Era representante do DEPHAN no estado.

P. João Alfredo Rohr, S.J., professor de Química e História Natural no Colégio Catarinense, ex-reitor, organizador do museu do Colégio, começando a trabalhar em arqueologia no estado.

Prof. Pedro Ignácio Schmitz, professor de Antropologia, Etnografia e língua Tupi na Universidade do Rio Grande do Sul, com pequenos trabalhos em arqueologia e um estágio para língua guarani no Paraguai e para arqueologia na Universidade argentina de Córdoba.

Igor Chmyz, funcionário do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná, cursando o terceiro ano de História nessa universidade. Representante do DEPHAN no Paraná, realizando pesquisas e acompanhando os trabalhos do CEPA.

Ondemar Ferreira Dias Jr., concluindo o curso de História na Universidade do Brasil, recomendado para o curso por Darcy Ribeiro.

José Proenza Brochado, aluno do terceiro ano de História da Universidade do Rio Grande do Sul.

Maria Andrea Loyola, estagiária do Museu Nacional.

Marilena Azevedo Fernandes Costa, concluindo o curso de História com especialidade em Antropologia em sentido amplo, recomendada por Prof. Egon Schaden.

Artur Ströbel, motorista da caminhoneta, que também fazia de cozinheiro no campo.

Resultados: Foram identificadas duas culturas arqueológicas.

a) A cultura encontrada na camada de húmus sem conchas, nos 15 cm mais superficiais. É a cultura da população que veio morar sobre o sambaqui já pronto e abandonado. Deles foram encontrados 18 sepultamentos; mais de 50 evidências de estacas, fazendo provavelmente parte de três choupanas; grande quantidade de pedra lascada ou parcialmente polida; material corante; objetos de osso e vértebras de peixe; coquinhos calcinados.

b) A cultura encontrada logo abaixo da camada de húmus nos 15 cm mais superficiais das conchas. É a cultura da população que construiu a última parte do sambaqui propriamente dito. Dela encontramos 12 sepultamentos, algumas evidências de estacas de choupanas, sinais do chão das habitações com muito carvão e cinza, fogueiras bem grandes, coquinhos calcinados e um bom numero de instrumentos de pedra e de conchas.

Reconstituição das culturas arqueológicas:

Cultura a: A choupana dos habitantes tinha uns 5 m de diâmetro, sendo construída com estacas finas de madeira (7 a 10 cm de diâmetro); a choupana tinha piso circular ou ovalado. Ao lado destas parecia haver pequenas choupanas com menos de 2 m de diâmetro. Os mortos eram sepultados nos arredores da casa em covas rasas, escavadas nas conchas do sambaqui ou na terra, numa profundidade não superior a 20 cm. Os corpos eram deitados de costas nas sepulturas, as mãos geralmente colocadas sobre o abdômen, as pernas recolhidas como quem assenta sobre os calcanhares. Os esqueletos mantinham a orientação oeste-leste, com a cabeça voltada para o nascente, ou o mar. Junto de diversos esqueletos havia ofertas: lâminas de machado grandes parcialmente polidas, peixe, coquinhos (para uma criança). Os moradores não parecem ter chegado a grande idade: não foi encontrado nenhum esqueleto de indivíduo idoso. Também não se encontraram esqueletos de crianças bem pequenas. A menor teria uns 10 anos. Não sabemos o que se fazia com os corpos de crianças. Como indica o grande número de sepultamentos, o grupo deve ter morado ali por bastante tempo. Também poderia ter sido um grupo relativamente numeroso, digamos de umas 30 pessoas.

Sobre a alimentação conhecemos estranhamente pouco: só encontramos algumas vértebras de peixe e alguns coquinhos calcinados. Sabemos apenas que não se dedicavam à coleta de mariscos, porque não deixaram conchas, nem pareciam ter sido caçadores ou pescadores, porque não apareceram ossos de animais terrestres ou peixes. Nem se encontrou carvão ou fogões, o que poderia indicar que os restos de alimentação estariam em outro lugar.

Dos instrumentos de trabalho foram encontradas numerosíssimas pequenas lâminas de machado, ou artefato parecido, (com menos de 5 cm de comprimento e largura), lascadas, que tinham sido encabadas. O gume estava gasto numa das extremidades, indicando a posição em que eram usadas, mas sem revelar sua verdadeira utilidade. Também havia algumas lâminas de machado semi-polidas, de tamanho bem grande, que eram encontradas normalmente nas sepulturas ou em outras covas. Registramos ainda quebra-coquinhos, grande número de lascas de basalto e um número quase infinito de lascas e seixos de quartzo, que tinham sido levados para o sítio e serviriam para alguma coisa.

Também o ornato era conhecido desse homem: encontramos boa quantidade de matéria corante vermelha e amarela. E em diversos lugares apareceram vértebras de peixe perfuradas, que teriam servido de contas de colar.

Estes moradores, quando se estabeleceram no sambaqui reviraram as camadas de conchas do mesmo, às vezes até um metro de profundidade.

Resumindo, pode-se dizer que se tratava de um grupo pacífico, sem armas reconhecíveis, sem cerâmica, nem pedra completamente polida, de cuja alimentação quase nada se conhece. Talvez fossem agricultores incipientes ou coletores. Quanto à idade em que teriam vivido não temos, por enquanto, dados certos.

Cultura b: Eram comedores de mariscos (ostras, berbigões etc) ao menos no tempo em que viveram no lugar. A falta completa de ossos de peixes parece indicar que não pescavam. Tinham suas moradias durante muitos anos no sambaqui, como mostra a superposição de camadas de conchas esmigalhadas, misturadas com carvão e cinzas, no lugar das antigas choupanas. Não se conhece a forma destas choupanas. Dentro delas e possivelmente também fora, faziam suas fogueiras para cozinhar os mariscos; nas fogueiras foram encontrados coquinhos calcinados. As ostras e o berbigão (anomalocárdia) eram então abundantes nos mangues próximos. Depois de comido o conteúdo, jogavam as conchas pelo declive do sambaqui, ao lado das choupanas. Estas camadas de conchas têm ali mais de 5 m de altura.

Os mortos eram enterrados ali mesmo, nas conchas, não se sabendo se fora ou dentro da choupana. Eram sepultados cuidadosamente, em covas pequenas e rasas, numa posição completamente dobrada: os joelhos sobre o peito, as mãos por baixo dos joelhos. Este modo de enterrar é bastante comum na América do Sul, desde os Andes até o litoral brasileiro.

Não parecem ter usado a pedra polida.

Sua cultura é diferente e mais antiga que a anterior.

As fotos e desenhos produzidos durante a expedição ficaram no CEPA da Universidade do Paraná, mas sobraram algumas, que mostro abaixo.

Paranaguá, 31 de julho de 1962.

Schmitz, o autor do diário, em 1962
Membros da equipe: Artur, Andrea, Padre Rohr, Brochado, Piazza
Profa. Annette Laming-Emperaire, no fundo Margarida Andreatta
O canteiro de escavação, com sepultamentos na parte frontal
Sepultamentos estendidos da cultura a
Sepultamento flexionado da cultura b

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