sexta-feira, 21 de maio de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO


8.1. O contato com missões religiosas espanholas

 

Em nossos projetos tivemos encontros diferenciados com missões religiosas, em que tanto conquistadores espanhóis e portugueses, como o Império Brasileiro, reuniram populações indígenas para civilização, catequese e organização do espaço. Essas missões diferem em razão da legislação correspondente e do período em que foram instaladas.

De acordo com a legislação colonial espanhola, as missões reuniam os índios em comunidades autossustentadas, semelhantes a municípios, onde os índios eram autônomos e era proibido o serviço aos colonos, excluídos praticamente do território missionário. Todas as missões estudadas são do período colonial.

De acordo com a legislação colonial portuguesa, os índios eram reunidos em aldeias para serem civilizados e catequisados, mas ficavam à disposição dos colonos durante um período do ano, mediante pagamento de jornal. As aldeias missionárias dependiam de um colégio da cidade. 

No período do Império Brasileiro, os índios eram reunidos em aldeamentos para liberar os caminhos da mineração, civiliza-los e torná-los úteis como trabalhadores rurais.

Em nossas pesquisas encontramos vestígios de aldeias indígenas dos três tipos mencionados. Na primeira postagem falo das missões (reduções) feitas por jesuítas durante o período colonial espanhol. Na segunda falo de aldeamentos do período colonial português e do período imperial do Brasil.

 

Reduções espanholas

Primeiro

Fizemos um contato efêmero com a missão guarani de jesuítas espanhóis no município de São Pedro do Sul, no centro do Estado do RS. 

No lugar denominado Pedra Grande existe um lajedo vertical, de 80 m de comprimento, cuja face abrigada é coberta por 40 m de gravuras da tradição Pisadas. Em 1972, junto com José Proenza Brochado, copiamos as gravuras, fizemos escavações na frente do paredão e cortes estratigráficos atrás do mesmo. Nas escavações predominaram elementos materiais da tradição Umbu, datados de mil antes de Cristo a mil depois de Cristo. 

Num corte atrás do paredão identificamos fragmentos de cerâmica vermelha colonial espanhola, que também serve para caracterizar o primeiro período reducional, os quais serviram de alerta para a existência de uma missão. 

De fato, os documentos atestam que os jesuítas criaram na região, em 1633, uma missão, que pode ser São José do Itaquatiá, ou São Miguel do Ituzaingó; ambos nomes fazem referência a um bloco gravado. A redução, de vida efêmera, desapareceu em 1637, no roldão das bandeiras paulistas.

A partir da pista levantada, a equipe de arqueologia da PUCRS escavou a superfície da antiga missão atrás do bloco e fez novos cortes entre os blocos, de que resultaram duas dissertações de metrado. 

Nosso trabalho ficou reduzido ao estudo das primeiras escavações e das gravuras.  Petroglifos do estilo pisadas no centro do Rio Grande do Sul em Pesquisas, Antropologia 34, 1982. 

 

Vista parcial do bloco ao qual se refere a notícia.

 

Segundo

Outro contato rápido foi com a redução Nossa Senhora da Candelária de Caaçapamini. Ele se originou do convite de um colega jesuíta para inspecionar um terreno coberto de cacos de telhas de mistura com cerâmica antiga, no Rincão dos Melo, do município de São Luiz Gonzaga, Noroeste do Rio Grande do Sul, microrregião de Santo Ângelo. 

Em 1970, quando visitamos o sítio, ele estava na proximidade de pequeno povoado que, em 1996, se tornou o município de Rolador, de uns 2.800 habitantes, pequenos agricultores. Os restos arqueológicos de antigo assentamento se espalhavam na superfície de uma colina aplanada, que se transformara em lavoura de soja. As telhas quebradas juncavam o solo e indicavam as quadras das antigas construções, inclusive a da igreja, na qual buscadores de tesouros tinham feito grandes estragos. 

Em outro momento, em pequena equipe, voltamos ao lugar em preparação de um trabalho maior.  Fizemos um croqui registrando o material visível, pequenas sondagens entre as plantas da soja e estudamos a implantação do sítio no antigo ambiente, como disponibilidade água e de madeira para construção e lenha. 

No perfil dos cortes percebia-se, claramente, a estratigrafia conservada das antigas construções: por cima, telhas; depois, o madeiramento carbonizado do telhado; por baixo, massas de barro com impressões de taquara das paredes, fragmentos de cerâmica e muito carvão. A redução tinha sido a primeira a ser coberta com telha-canoa depois de um incêndio provocado por intenso vento norte. As telhas serviram para identifica-la sem erro: era a redução de Nossa Senhora da Candelária de Caaçapamini. 

Na ocasião recolhemos telhas, 1.760 fragmentos cerâmicos e amostras de material de construção. O propósito de voltar após a colheita da soja para um trabalho mais completo nunca se realizou e, assim, perdeu-se uma oportunidade excepcional de desvelar a sede inteira de uma redução do primeiro período missioneiro. Na cerâmica, além das formas tipicamente indígenas, já tem boa representatividade a cerâmica vermelha colonial, com formas de prato, tigela e pequena panela de base plana ou em pedestal; na Pedra Grande este tipo de cerâmica tinha servido como indicador de uma missão. 

A redução, fundada por Roque Gonzáles e Pedro Romero, em 1627, tinha participado de eventos importantes da penetração missionária e conseguira bastante estabilidade. Fora abandonada pelos moradores, depois de incendiá-la, em 1637, para ela não servir de abrigo aos bandeirantes, que estavam devastando as reduções, carregando para suas fazendas de São Paulo os índios que conseguiam aprisionar. Os da redução de Caaçapamini se refugiaram, em tempo, na outra margem do rio Uruguai.

Os materiais recolhidos, a bibliografia e documentos disponíveis no Instituto Anchietano foram utilizados por Neli Terezinha Galarce Machado para sua dissertação de mestrado na UNISINOS, em 1999: A Redução de Nossa Senhora da Candelária do Caaçapamini (1627-1636). 

O trabalho foi publicado posteriormente pela Unijui. Também há uma postagem sobre a redução no blog do Instituto Anchietano de Pesquisas, em 05/07/2018.

 

Fragmentos de telhas na plantação de soja.

 

 Cerâmica da redução: à esquerda cerâmica vermelha colonial espanhola, à direita cerâmica Tupiguarani.

 

Croqui feito sobre a distribuição do material

 

 

As duas reduções mencionadas até aqui, mais a de Jesus e Maria, na bacia do rio Pardo, são as únicas do primeiro período seguramente identificadas no Estado.

 

Terceiro

A dissertação de mestrado intitulada A estância missioneira de Yapeyú, a Estância Santiago e o Passo do Aferidor, apresentada, em 2014, por José Afonso de Vargas na UNISINOS, conduziu-nos a uma experiência mais duradoura com estruturas do período missionário posterior às invasões bandeirantes. Dela resultou um projeto do Instituto Anchietano, cujo relatório, sob o título de A grande estância de Yapeyu, foi publicado em Pesquisas, Antropologia 75 (2020).

A grande estância de Yapeyu foi criada e administrada pela redução de Nuestra Señora de los Reyes Magos de Yapeyú, fundada pelo padre Roque Gonzáles em 1627, na margem direita do rio Uruguai. Era a mais meridional e também a mais populosa das reduções da Província jesuítica do Paraguay. 

Sua estância de gado também era a mais extensa, desdobrando-se por ambas margens do rio Uruguai, desde o rio Ibicuí até o rio Negro, na R.O. do Uruguay. Ela abastecia de carne bovina a própria redução (umas 10.000 vacas por ano) e vendia gado para outras reduções, quando necessitadas. 

A estância começou, em 1657, a reunir gado solto de vacarias da margem direita e da margem esquerda do Uruguai e permaneceu ativa no fornecimento de carne às reduções até a expulsão dos jesuítas, em 1769. Durante o período jesuítico ela era administrada por famílias indígenas, sob a coordenação de um ou dois religiosos da redução. Depois, foi do domínio da Província de Buenos Aires e, em 1802, foi incorporada ao Estado Brasileiro. 

Da antiga estância encontramos, mais ou menos preservadas, estruturas de manejo (currais, potreiros e residências dos índios estancieiros), residências dos coordenadores religiosos e de seus auxiliares imediatos e, também, capelas utilizadas para o serviço religioso. A razão da conservação das estruturas é que, após a incorporação ao Império do Brasil, em 1802, elas continuaram a ser utilizadas pelos novos proprietários lusos, para a mesma criação de gado. Alguns prédios, com as devidas adaptações, serviram de residência para os novos proprietários e assim continuam. De todas as estâncias missioneiras, a de Yapeyú é a que mais concretamente representa o manejo de gado das reduções. 

Até agora, o projeto se ocupou com as estruturas existentes no município de Uruguaiana, no Sudoeste do Rio Grande do Sul. Ali estudamos as estruturas superficiais e a história das seguintes sedes ou cascos: o da chamada Estância Santiago, a partir de 1657; o da Estância São José, a partir de 1694 (ou 1701); o da Estância São Sebastião e o da Estância Libertadora, posteriores a 1730. Cada sede mantinha postos de manejo e controle nas passagens (vaus) dos rios e em lugares por onde o gado poderia fugir ou ser desviado. 

Uma sede, com seus postos, podia contar até 170 pessoas, entre homens, mulheres, jovens e crianças, que continuavam ligados à vida da sede missional. 

As construções da fazenda acompanhavam o estilo construtivo da sede, incluindo as novas técnicas construtiva trazidas pelos irmãos arquitetos vindos da Itália.

Ainda não tivemos acesso às estruturas existentes na R.O. do Uruguay e na Argentina.

O projeto foi divulgado na publicação em Pesquisas, Antropologia 75, em congressos e reuniões científicas e em postagens no blog. Ele vem tendo boa repercussão na população local e entre historiadores missioneiros.


A casa do Aferidor do Caminho Real das Missões, na beira do rio Uruguai, onde a primeira capela tinha sido levantada ao redor de 1656.


O setor habitacional da estância São José, começada em 1701.


O grande curral (60 m de diâmetro) da estância São José.


A residência dos coordenadores jesuítas da estância São Sebastião, começada ao redor de 1730.


A antiga grande capela da estância São Sebastião.


Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz

sexta-feira, 7 de maio de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO

 7.2 Experiências com arte rupestre, pinturas continuação

 

O estilo Serranópolis

 

Em Serranópolis, sobre o rio Verde, afluente do Paranaíba, em área de cerrado, onde a ocupação indígena começa ao redor de 12.500 antes do Presente (10.500 antes de Cristo), as pinturas cobrem as paredes de quarenta abrigos abertos e pouco profundos existentes em paredões e em torres residuais de arenito silicificado. Os sítios abrigaram populações caçadoras e coletoras durante milênios e deixaram espessas camadas com instrumentos característicos das tradições Itaparica e Serranópolis, junto com abundantes restos alimentares bem conservados. O conjunto permite reconstituir boa parte da vida dos antigos habitantes. 

As pinturas, feitas com pigmentos minerais, eram realizadas em superfícies mais fortemente silicificadas das paredes rochosas. Onde as paredes apresentam espaços de arenito pouco silicificado se produziam gravuras do estilo Pisadas, aparentemente pelas mesmas populações que faziam as pinturas. A faixa das representações não costuma ultrapassar a altura que o executor podia alcançar com o braço, quando pisado no chão ou sobre uma saliência maior de rocha. Elas eram mais bem-acabadas quando o pintor se encontrava em posição confortável e são mais estilizadas quando em posição forçada.

As pinturas, em tonalidades de vermelho e preto, compõem-se, predominantemente, de composições geométricas que lembram escudos e objetos de uso (cestos), e representação de animais, com predomínio de aves semelhantes à arara e à ema, mas também répteis, tatus e pisadas humanas. Alguns animais estão representados com todos os detalhes, mas rígidos, como numa coleção. Os humanos são menos presentes que os animais. As pinturas estão agrupadas e sobrepostas, mas raramente compõem cenas explícitas como em Caiapônia. 

No conjunto há elementos que lembram a tradição Geométrica de que falei acima, e raros elementos que lembram o estilo Caiapônia, de que falarei a seguir. Mas as pinturas de Serranópolis são uma composição própria, que denominamos estilo Serranópolis

O estudo da arte rupestre de Serranópolis está publicado em Publicações Avulsas do IAP 11. Arqueologia nos Cerrados do Brasil Central. Serranópolis II: Pinturas e Gravuras dos Abrigos Pedro Ignácio Schmitz. Colaboração de Fabiola Andréa Silva e Marcus Vinicius Beber, 1997.

Painel de pinturas do GO-JA-03. Serranópolis, GO.


O mesmo painel



Um recorte do painel acima



Painel de Serranópolis, GO-JA-03



Painel de Serranópolis, GO-JA-03




Painel de Serranópolis, GO-JA-15, em teto raso, onde a execução foi mais difícil. As cruzes lembram Caiapônia.

 

O estilo Caiapônia

 

A pequena distância de Serranópolis, também em área de cerrado, encontra-se Caiapônia, na bacia do rio Caiapó, afluente do Araguaia. Na extensa rampa arenítica de uma chapada, na localidade de Palestina, foram estudadas várias dezenas de abrigos e nichos com pinturas; também um paredão com gravuras do estilo Pisadas. Em razão da reduzida consistência das paredes de arenito as pinturas têm os contornos menos definidos e estão mais ameaçadas de desaparecimento, mas as gravuras estão bem.

Ao contrário de Serranópolis, onde os abrigos apresentam espessas camadas de ocupação milenar, em Palestina foram encontradas poucas camadas ocupacionais de alguma representatividade, mas são representativos alguns campos de seixos contendo artefatos indígenas antigos. Esta constatação deixa como elemento predominante do lugar a arte rupestre, mas sem conexão garantida com alguma cultura datada. A pintura está claramente no âmbito da tradição Nordeste, as gravuras, da tradição Pisadas.

As pinturas compõem-se de pequenas figuras, executadas com poucos traços, de humanos e animais em movimento, que produzem cenários e conjuntos significativos. Características são composições de homens com porretes caminhando um atrás do outro, ou se enfrentando em dupla; cenas de casal com criança, ou de homens carregando criança às costas; cenas de caça e de ritual; cenas de abastecimento juntando em pequeno espaço uma rede, um peixe, uma planta com tubérculos, um homem colhendo mel num tronco de árvore um grupo de homens caçando um veado com crias; típicas são ainda representações de peixes isolados, em fila, ou formando cardumes; cirandas de macacos, de emas, de emas e macacos; carimbos e cruzes. Os homens são representados com o pênis destacado; mulheres aparecem menos. As cores predominantes são tonalidades de vermelho de pigmentos minerais.

As pinturas cobrem todas as paredes e nichos que a mão humana podia alcançar, do chão, ou de uma protuberância rochosa (mesmo com perigo de despencar no vazio); tetos inalcançáveis com a mão eram salpicados jogando pigmentos contra eles. A qualidade da execução dependia da posição em que o pintor as realizava, em pé, agachado, com os braços esticados para a frente, para cima, para baixo ou para os lados. O conjunto de pequenos abrigos, nichos, tocas e passagens, com suas pinturas, até parece o resultado de uma gincana milenar, onde o desafio era pintar tudo, mesmo os lugares mais difíceis. 



Painel de Caiapônia, GO-CP-16

Painel de Caiapônia, GO-CP-29


 

Painel de Caiapônia, GO-CP-16


Painel de Caiapônia, GO-CP-33


Painel de Caiapônia, GO-CP-o



 


Caiapônia, representações humanas em diversos abrigos.

 

Considerações

As pinturas cobrem espaços de cerrado e de caatinga do Centro e Nordeste do Brasil, em variados estilos e tradições; são menos frequentes e representativas em outras regiões do país. 

Olhando, agora, o conjunto de pinturas e gravuras comentadas nestas postagens observamos que elas não usavam grandes acabamentos formais para transmitir suas mensagens, entretanto elas as transmitiam e eram diversificadas. Elas tornavam doméstico e seguro o lugar escolhido para acampar ou morar e o identificavam como de seu grupo e de seu território, no qual se podiam movimentar sem temor. Por outro lado, qualquer grupo estranho se daria conta, imediatamente, de que não estava em espaço de sua pertença. 

Os ícones eram instrumentos de memória entre gerações, lembravam eventos ocorridos, mostravam cenas do cotidiano como família, abastecimento, festa e ritual, exemplificavam o ethos do grupo, que podia ser mais sistemático, prescritivo e combativo, ou mais liberal, proativo, alegre, explorador. Eles formavam o bastidor da vida familiar e cotidiana, e o cenário adequado para a prática ritual, como mostram as camadas espessas de resíduos ocupacionais, que constituem a parte material desses sítios. 

As representações gravadas e pintadas que estudamos eram de acesso público. Qualquer indivíduo do grupo (homem, mulher e criança) tinha acesso a elas para as conhecer, modificar e complementar. Nelas estava registrada a vivência das gerações passadas e nelas qualquer um da geração presente podia deixar suas marcas para as gerações futuras; muitas eram simples e de fácil execução. Neste sentido, pouco se conhece em nosso estudo, de nichos de arte rupestre reservados a um usuário e vedados ao público, considerados espaços privativos de curandeiros e outras lideranças religiosas. Mesmo assim, toda arte rupestre parece carregar em si algo que a separa da simples materialidade; sua apropriação reúne conhecimento, sensibilidade, adesão ou rejeição.

 

Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz