sexta-feira, 23 de abril de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO


7.2 Experiências com arte rupestre, pinturas.

 

Na página do Instituto, em Anchietano, Diversas 5, se encontra uma visão geral de nossos encontros com pinturas e gravuras no Centro do Brasil, sob o título Pinturas e gravuras da pré-história de Goiás e Oeste da Bahia, 1984.

 Na primeira parte desta postagem falo de encontros com a tradição Geométrica; na continuação, sobre o estilo Serranópolis e o estilo Caiapônia. 

 

A tradição Geométrica

O primeiro encontro com pintura rupestre brasileira ocorreu no ano de 1972, em Formosa, dez quilômetros ao norte de Brasília, em área de cerrado, na bacia do rio Paranã, um dos formadores do rio Tocantins. Durante um curso de introdução à arqueologia para alunos da Universidade Católica de Goiás, identificamos, , descrevemos, fotografamos e, depois, copiamos em tamanho natural as pinturas de sete pequenos abrigos de um espigão calcário, usando lâminas de plástico transparente, como se fazia na época. Em casa fizemos a redução das imagens, a classificação das representações, o uso de convenções para representar as cores, porque a publicação seria em preto-e-branco e em tamanho reduzido. Nesses abrigos encontramos a primeira representação da tradição Geométrica.

As pinturas cobrem as paredes e o teto, de 0,40 a 7,50 m de altura. São representações abstratas, geométricas ou livres, raramente figurativas, representando, esquematicamente, pisadas humanas, tartarugas, lagartos ou aves. As cores usadas: vermelho, alaranjado, vinho, vermelho escuro e preto. Às vezes se combinam duas cores, preto com vermelho, ou vermelho com alaranjado. As figuras costumam estar agrupadas e também destacam saliências e depressões. 

Divulgamos um resumo do trabalho e algumas figuras na publicação acima indicada. Não chegamos a divulgar o trabalho completo porque Alfredo Mendonça de Souza, da Faculdade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, assumiu a pesquisa da região através do Projeto Paranã e publicou convenientemente seus resultados. 

 

Pinturas da tradição Geométrica em Formosa, GO


Pinturas da tradição Geométrica em Formosa, GO

 

Depois de Formosa, a tradição Geométrica foi, novamente, encontrada em abrigos areníticos do Alto rio Sucuriú (MS), em ambiente de cerrado, onde, a partir de 12.500 antes do Presente (10.500 anos antes de Jesus Cristo), tinham acampado grupos de caçadores da tradição lítica Itaparica, sem ocupações importantes posteriores. Alguns abrigos se constituem de pequenas abas protegidas da chuva em torres residuais, outros são furnas e galerias escuras na borda de uma chapada residual. Pinturas da tradição Geométrica e gravuras da tradição Pisadas se alternam em espaços iluminados e protegidos, formando painéis, ora de uma ora de outra técnica. Na postagem anterior mostramos uma gravura. Estas se constituem de pequenos e estreitos sulcos produzidos por fricção. 

Na presente postagem mostramos algumas pinturas. Elas são predominantemente lineares, abstratas, em tonalidades de vermelho e amarelo, servindo o amarelo como sombra, alternância ou preenchimento em figuras tracejadas em vermelho. Há sobreposições de pinturas, mas é difícil deduzir o que isto significa cronológicos. 

Além de documentar as pinturas e as gravuras, fizemos cortes estratigráficos nos abrigos para caracterizar a cultura material, a sequência e datação das ocupações. O trabalho não pode ser concluído contra nossa vontade. 

Em suas respectivas dissertações de mestrado na UNISINOS, Marcus Vinicius Beber fez o estudo da arte rupestre e reproduziu nela todas as cópias das pinturas e gravuras; Ellen Veroneze mostrou o desenvolvimento de todo o projeto e seus materiais. Ambos trabalhos estão disponíveis na página do Instituto sob o título ‘Dissertações’.


Pinturas geométricas do Alto Sucuriú, MS. O tracejado representa a cor amarela.

 

Pinturas geométricas do Alto Sucuriú, MS. O tracejado representa a cor amarela.


A imagem original


Pinturas geométricas do Alto Sucuriú, MS. O tracejado representa a cor amarela.

 

A tradição São Francisco

Estudamos uma área com pinturas e gravuras rupestres em Correntina, Coribe e Santa Maria da Vitória, BA, em ambiente de caatinga, sobre o rio Corrente, afluente da margem esquerda do rio São Francisco, onde as pinturas cobrem as paredes de abrigos calcários da serra do Ramalho. Durante milênios tinham acampado ali, primeiro, populações caçadoras, depois cultivadoras e finalmente ceramistas da tradição cerâmica Una. A maior parte das pinturas é da tradição São Francisco, mas há sobreposições a carvão, que certamente são de outras populações. Em lajedos da margem do rio Corrente há gravuras do estilo Pisadas.

As pinturas da tradição São Francisco preenchem paredões inteiros com todos  seus nichos, mesmo os difíceis de escalar. Mais que pela temática, elas se caracterizam pela variedade de cores nos matizes de preto, de marrom, de vermelho, de amarelo, cores que nas figuras vêm associadas em pares, combinando preto com vermelho, preto com amarelo, vermelho com marrom, vermelho com amarelo, marrom com amarelo, usando uma cor como central e outra como preenchimento, sombra ou moldura. Na temática predominam combinações abstratas com forma de escudos feitos de tracejado multicolor; nas representativas, estilizadas, percebemos grupos dançando de braços dados, peixes dourados, tatus, muitos pés humanos. Por seu ar festivo, alegre, multicor, provocam um natural respeito místico, igual ao de uma velha igreja medieval.

O estudo da arte rupestre da Bahía está publicado em Publicações Avulsas do IAP 12. As Pinturas do Projeto Serra Geral. Sudoeste da Bahia. Pedro Ignácio Schmitz, Mariza de Oliveira Barbosa, Maira Barberi Ribeiro,1997.

Pinturas da tradição São Francisco, Coribe, BA

 

Pinturas da tradição São Francisco, Coribe, BA

 

Correntina: pinturas a carvão, posteriores à tradição São Francisco.


Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO


7.1 Experiências com arte rupestre, gravuras.

Nesta postagem conto nossas experiências com arte rupestre, começando com as gravuras. 

Por arte rupestre entende-se a produção intencional de pinturas e gravuras sobre fundo rochoso. A denominação independe de maior ou menor refinamento e cuidado em sua produção. Ela pode resultar de aplicação de pigmentos coloridos sobre a rocha (pintura) ou de interferência física na rocha com retirada de massa (gravura). A pintura costuma ser realizada em superfícies mais consistentes, a gravura em menos resistentes. Ela tem a função de registro estável para a geração presente e para seus descendentes. 

No território nacional, desde a década de 1960, começaram a ser realizados levantamentos sistematizados dessas manifestações indígenas. Eles eram acompanhados de documentação e de classificação. A orientação predominante era de origem francesa e a grande mestra era Annette Lamming-Emperaire; mas não se podem omitir influências norte-americanas. Nas classificações, foram usados, de preferência, os termos de Tradição para identificar o modo de execução e a temática geral de um fenômeno observado sobre grande extensão territorial; EstiloFase ou Fácies para divisões temáticas dentro da Tradição.  

Este primeiro levantamento produziu conhecimento geral sobre grande parte do território brasileiro, teses acadêmicas e algumas publicações de impacto pela riqueza de suas ilustrações. 

Participamos dessa fase de atividades em diversas regiões em que realizamos projetos. Nas representações gravadas (gravuras), a participação foi maior na tradição chamada Pisadas (também denominada Meridional), presente em diferentes regiões brasileiras como em países vizinhos; a tradição Pantanal foi criação nossa, a partir de pesquisas em Goiás e no Mato Grosso do Sul. Nas representações pintadas (pinturas) os projetos realizados nos cerrados do Brasil Central nos puseram em contato com a tradição Geométrica, a tradição Nordeste e a tradição São Francisco.

 

A tradição Pisadas

Meus primeiros contatos com gravuras indígenas se deram em 1972 ao escavar abrigos de caçadores da tradição Umbu na bacia do rio Ibicuí e na bacia do rio Jacuí, em companhia de José Proenza Brochado. Ali encontrei a essência da tradição (ou estilo) Pisadas. Os rasos e iluminados abrigos areníticos tinham sido ocupados pelos nativos entre mil anos antes de Cristo e mil anos depois de Cristo. Testemunho da ocupação eram as numerosas lascas, as pontas de projetil e os outros instrumentos de pedra, na parte abrigada pela rocha, onde as famílias indígenas tinham permanecido longos períodos enquanto realizavam suas atividades de subsistência nos arredores. Marcando as paredes, de alto a baixo e de lado a lado, com os sinais de sua identidade grupal, elas tornavam o local doméstico (habitável e seguro) e as marcas deixadas o identificavam como sendo de suas famílias. Quando voltassem, depois de passar estações em espaços desabrigados em busca de alimentos e matérias primas, ou mesmo depois de longas temporadas em regiões afastadas, não teriam dificuldade em reconhecer o local onde eles, ou seus antepassados, já tinham vivido. 

Essa marcação consistia de pequenos sulcos, independentes, agrupados ou cruzados e depressões mais ou menos profundas, em cujo conjunto se podiam identificar pisadas de aves e de felinos (onças), às vezes formando trilhas. Em algumas depressões, especialmente nas de onça, ainda se observa a sobreposição de pigmentos vermelhos ou pretos sugerindo sua retomada em rituais de atualização, em que contariam, para as novas gerações, a história de suas antigas caçadas. Este é um contexto de populações que vivem da caça e da coleta e ainda não dominam a cerâmica e o cultivo. (Pesquisas, Antropologia 34,1982)

Na continuação das pesquisas, encontrei representações rupestres semelhantes às registradas acima, em diversas partes do Brasil, geralmente em companhia de pinturas: em Goiás (Caiapônia e Rio do Peixe, na bacia do rio Araguaia; em Serranópolis, na bacia do rio Paranaíba), no Tocantins (Monte do Carmo, na bacia do Tocantins); na Bahia (Correntina, na bacia do São Francisco) e no Mato Grosso do Sul (Alto Sucuriú, na bacia do rio Paranaiba). Ocupavam as paredes de abrigos areníticos largos e pouco profundos, que tinham sido habitados por populações caçadoras e coletoras pré-cerâmicas. A participação num estilo de gravação não quer dizer que partilhavam todos os elementos da cultura.  (Pesquisas, Antropologia 34, 52, Publ. Av. 11 (Serranópolis, GO), 8 (Caiapônia, GO), 12 (Serra Geral, BA), Marcus Vinicius Beber(dissertação de mestrado).

 

 

Gravuras na Linha Sétima, RS (RS-MJ-53)

 


Gravuras na Gruta de Canhemborá, RS (RS-MJ-15)

 

 


Gravuras no sítio GO-JA-14, Serranópolis, GO.

 


Gravuras no Alto Sucuriú, MS (MS-PA-02)

 

A tradição Pantanal

Em 1973, pesquisando as nascentes do rio Tocantins e do Alto rio Araguaia (GO) e, mais tarde, o Pantanal perto de Corumbá (MS), entramos em contato com uma tradição de gravuras bem diferente da tradição Pisadas: é a que chamamos de tradição Pantanal, ligada a populações ceramistas e próximas às aldeias em que moravam. Nas duas regiões seus executores partilhavam uma tradição de representação rupestre, mas não a totalidade de suas culturas; em Goiás seriam agricultores da tradição cerâmica Aratu (Pesquisas, Antropologia 30); no Pantanal, de pescadores e caçadores da tradição cerâmica Pantanal (Pesquisas, Antropologia 54). As gravuras, em Goiás, continuam ao longo do rio Tocantins, sob a forma de grandes círculos. 

Suas representações cobrem extensos lajedos horizontais e blocos próximos, na proximidade de corpos de água como lagoas, banhados, canais ou rios. As grandes figuras, construídas com largos e profundos sulcos (5 a 7 cm), compõem-se de ícones variados, entre círculos simples, concêntricos ou radialmente divididos, figuras em cruz, ou onduladas, pisadas de animais terrestres, anfíbios e aquáticos, grandes serpentes, ou sulcos reunindo e incorporando figuras; nos blocos erguidos também figurações humanas. Na distribuição espacial, notam-se diferenças entre os do Pantanal e os do cerrado do rio Tocantins. Na postagem sobre o Pantanal ilustramos as ilustrações do Mato Grosso do Sul, aqui mostramos algumas figuras do Alto Tocantins. Certamente as figuras mostram ícones de sua mitologia, e a distribuição no espaço local podiam ter sido pautas para o desenvolvimento de correspondentes rituais.



Gravuras em Jaraguá, GO (GO-JU-54).

 

 


Gravuras em Jaupaci, GO (GO-JU-28).

 

 


Gravura em Jussara, GO (GO-JU-11).



Gravuras em Jussara, GO (GO-JU-25).

 

 

Outras tradições de gravuras.

Além das indicadas, lembro que no Nordeste do país existe uma tradição de gravuras estilizadas ou abstratas, a tradição Itaquatiaras, cujo protótipo são as belíssimas gravuras da Pedra do Ingá, na Paraíba. Essas representações são encontradas em blocos rochosos junto de afloramentos de água, no semiárido da região. Ao tempo das chuvas elas estão, ao menos parcialmente, cobertas pela água; ao tempo da seca estão por cima delas. É manifesta a ligação com a presença de água na região em que a mesma costuma ser escassa. Assim é possível usar as gravuras como sinalizador do escasso líquido. 

Ao longo do rio Amazonas e seus afluentes são ainda mais numerosas as gravuras, em vários estilos regionais, num dos quais predominam as caras humanas. Localizadas nas margens e nos blocos de cachoeiras, são ao mesmo tempo, identificadoras do local, sinalizadoras de perigo para os que se arriscam, mas também representações dos protetores míticos que lhes podem valer. 

Como, geralmente, se trata de figuras abstratas ou altamente estilizadas, não é fácil conhecer todo o significado temático. No estilo Pisadas, o sentido de domesticação do espaço familiar e de pertença a um grupo maior é bastante manifesto. Na tradição que denominamos Pantanal o aspecto mítico-ritual parece mais acentuado.


Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz