quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O HERBARIUM ANCHIETA E SUA IMPORTÃNCIA PARA A COMUNIDADE CIENTÍFICA E ESTUDOS DA BIODIVERSIDADE




O Herbarium Anchieta-PACA foi fundado pelo Pe. Balduíno Rambo em 1932. Estava sediado no Colégio Anchieta em Porto Alegre até o ano de 1964, quando foi transferido para o Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, São Leopoldo.


Pe. Balduíno Rambo

Desde sua criação o herbário exerceu um papel fundamental junto à comunidade científica estadual, brasileira e também internacional, pois Pe. Rambo permutava informações, publicações e material com vários países de todo mundo. Quando da sua morte em 1961, Rambo já possuía na coleção 65.000 exemplares de plantas amostrando grande parte de diversidade do RS, também de outros estados brasileiros e muitas amostras estrangeiras.  

Desta coleção resultaram 40 trabalhos publicados, em vida, em diversas revistas científicas; e deixou prontos para publicação mais 14 manuscritos, num total de 930 páginas, referentes a outras famílias do seu herbário, os quais foram publicados após sua morte.

Com a morte de Rambo, o herbário passou a ser coordenado pelo Pe. Aloysio Sehnem dando continuidade à sua obra. Desta maneira, a coleção foi crescendo. O Pe. Sehnem dedicava-se especialmente a Briófitas, Pteridófitas e Orquidáceas, mas também cuidava de plantas em geral, que foram somando na coleção; disponibilizava-as para a realização de numerosos trabalhos em diferentes áreas da Botânica.

Pe. Aloysio Sehnem

Sehnem estudou praticamente todo o material do seu herbário particular, que juntamente com o de outros, resultou em cerca de 50 trabalhos científicos e a descrição de aproximadamente 100 táxons, incluindo espécies, variedades e formas novas para a Ciência.  Ele participou do Projeto Flora Ilustrada Catarinense, tendo estudado praticamente todas as famílias de Pteridófitas com exceção de Isoetaceae, Lycopodiaceae e Selaginelaceae,

Com a morte de Sehnem, em 1981, a curadoria do Herbário passou a ser exercida pelo Prof. Ronaldo Adelfo Wasum até o ano de 1993 e na sequência a bióloga Maria Salete Marchioretto assumiu esta função, a qual exerce até os dias de hoje. Ambos deram continuidade aos trabalhos iniciados pelos dois botânicos com a inclusão de novos exemplares através de projetos de pesquisa e seguiram a dinâmica de permutas, doações, empréstimos e publicação de numerosos trabalhos envolvendo a coleção. Embora os sucessores no cargo de curador do Herbarium Anchieta não sejam jesuítas, são biólogos que, imbuídos do mesmo espírito de Rambo e Sehnem, buscam dar continuidade à obra e coleção iniciada por eles com o maior zelo, rendendo graças por terem o privilégio de dispor desta preciosidade.

Atualmente o Herbarium Anchieta possui uma coleção de aproximadamente 142.000 exemplares. Está vinculado à Rede Brasileira de Herbários e à Rede de Herbários do RS. É considerado um dos maiores herbários do Estado e está muito bem representado no país. Conta com as coleções de Angiospermas, Licófitas e Samambaias, Briófitas, Fungos, Liquens, Algas e Madeiras. Além disso, possui uma rica coleção de Tipos Nomenclaturais somando cerca de 1.200 exemplares. Todas as imagens dos tipos estão disponíveis no site do Instituto Anchietano de Pesquisas e no Specieslink.



Tipos nomenclaturais de Angiospermas e Pteridófitas




Tipos nomenclaturais de Fungos e Briófitas

Sala da coleção de Angiospermas


Coleção de Fungos
Coleção de madeiras

O herbário possui seus dados informatizados e de fácil acesso a todos, estes podem ser encontrados através do Specieslink, no INCT Herbário Virtual da Flora e dos Fungos do Brasil, bem como pelo Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr) e Global Biodiversity Information Facility (GBIF). Os acessos ao site Specieslink demonstraram que no ano de 2018 tiveram mais de 6.000.000 de visualizações. Estes dados serviram de base para numerosos trabalhos em nível nacional e internacional.

O herbário mantém intercâmbio com herbários nacionais e internacionais, através de empréstimos, permutas e doações integradas às pesquisas. Além disto, o herbário recebe frequentemente visitas de pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa, que utilizam o acervo para desenvolver trabalhos técnicos, monografias de conclusão de curso, dissertações e teses de douorado. Neste sentido o herbário é um referencial nacional como coleção científica, tanto pelo seu acervo, quanto pela política de atendimento ás solicitações de empréstimos e informações.

Atualmente, existe maior preocupação com a conservação de ecossistemas, o que tem incentivado muitas atividades científicas no sentido de documentar nos herbários a flora de diferentes áreas remanescentes, que se encontram ameaçadas ou em processo de alteração. O Herbarium Anchieta está engajado no esforço em definir espécies ameaçadas de extinção da flora do Rio Grande do Sul, juntamente com projetos que visem a preservação e a conservação das mesmas.

Sala geral de trabalho e atendimento a alunos e pesquisadores

A dinâmica que envolve o herbário caracteriza-o como um autêntico laboratório prático e didático para o saber, envolvendo conhecimentos para a observação direta das amostras botânicas. Através da educação informal se estabelece um fluxo de atividades cotidianas no herbário, enquanto pela educação formal se dá a aprendizagem coordenada, articulada ao domínio do conhecimento científico, resultado dos constantes questionamentos da Ciência.
Com os processos educativos, é proporcionada análise, absorção e síntese das informações reconhecendo o papel fundamental do herbário como um instrumento básico de ensino, associado à formação de novos pesquisadores especializados em diferentes áreas da Botânica. O herbário tem uma atuação extremamente importante perante a comunidade científica, pois disponibiliza diretamente seu acervo aos pesquisadores e estudantes que trabalham com amostras vegetais, atendendo a uma grande demanda de consultas e empréstimos.

Imagens e Texto: Dra. Maria Salete Marchioretto
Curadora do Herbárium Anchieta, I.A.P., São Leopoldo.


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

O POVOAMENTO GUARANI DO VALE DO RIO DOS SINOS


Pedro Ignácio Schmitz, Jairo Henrique Rogge,
Jefferson Aldemir Nunes, Ranieri Hirsch Rathke

O texto completo está on-line em Pesquisas, Antropologia 74, 2019, 195 páginas. A foto é de Denise Maria Schnorr, 1997. Aqui apresentamos pequena síntese.

A publicação oferece uma visão geral do antigo povoamento guarani no vale do rio dos Sinos, utilizando coleções e os correspondentes documentos, de levantamentos arqueológicos realizados nas décadas de 1960 e 1970. Os sítios arqueológicos foram colocados em seu contexto geográfico e iluminados com relatos de missionários jesuítas que estiveram entre os índios Carijó-Guarani, do Sudeste do Brasil nas primeiras décadas do século XVII.  Imagens da aldeia Mbyá-guarani de Riozinho, no alto vale do rio dos Sinos, como a do título, dão visibilidade às descrições arqueológicas e missionárias.
As coleções e respectivos documentos, conservadas nos museus, correspondem, aproximadamente, a setenta sítios arqueológicos. Eurico Th. Miller, em 1967 publicou um relatório sobre as primeiras explorações então realizadas. Posteriormente, em 2003, Adriana Schmidt Dias elaborou sua tese de doutorado sobre o povoamento do alto vale, a partir de novo levantamento, e Jefferson Z. Dias, em 2015, voltou aos sítios de Miller para sua tese sobre o povoamento do vale do rio Paranhana, principal afluente do rio dos Sinos.
Para a presente pesquisa estavam disponíveis boas coleções. No Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul (MARSUL), em Taquara, estavam guardadas grandes coleções das décadas de 1960 e 1970, acompanhadas de minuciosa documentação, feitas por Eurico Th. Miller, que percorreu todo o vale; em menor proporção por Pedro Augusto Mentz Ribeiro, Plínio Dall’Agnol e Guilherme Naue (Ir. Valeriano), que estudaram a margem direita do vale médio. No Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisinos (IAP) estavam coleções feitas, no mesmo período, em ambas as margens do vale médio por Pedro Ignácio Schmitz e companheiros.
O trabalho examinou coleções de 51 sítios de todo o vale, incluindo alguns vistos nas teses mencionadas. Algumas coleções, cujos dados constam no catálogo, não foram encontradas, fazendo mais falta, especialmente as de 15 sítios estudados por Miller no rio Rolante e vizinhanças.
As coleções e as anotações que as acompanham são significativas por serem as sobrevivências dos antigos assentamentos indígenas, que desapareceram sob o arado de ocupantes posteriores. Os últimos pesquisadores já encontraram poucos vestígios dessas antigas ocupações.




O primeiro levantamento dos sítios Tupiguarani foi realizado sob o enfoque histórico-cultural, trazido pelo PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), coordenado pelos arqueólogos americanos Clifford Evans e Betty J. Meggers (1965-1970). O programa propunha rápida cobertura de grandes extensões do território brasileiro, usando como referência geográfica as bacias hidrográficas. No presente caso, a do rio dos Sinos.
Os sítios eram identificados com uma sigla, na qual constava: Estado (RS), vale do rio (nesse caso, S) e o número sequencial do sítio levantado (p.ex. 272). A documentação dos sítios compunha-se de fichas descritivas do sítio com sua correspondente numeração, além de croquis, fotos e mapas. Nesse tempo não havia GPS e a máxima precisão alcançada era a dos Mapas do Exército, que também não eram de fácil aquisição. Abaixo, croqui do sítio RS-S-272, Morretes, no baixo vale do rio; para localização ver mapa acima.



O material recolhido não era tratado por unidade de objeto, mas como amostra de conjunto (de superfície, de quadrícula, ou de nível de escavação). Ele era recolhido sistematicamente, na superfície total do sítio, por superfícies delimitadas, por quadrícula, ou nível, evitando qualquer preferência ou seleção por tamanho, cor ou decoração.
Em laboratório, o material era lavado em água corrente e recebia um número de acervo por amostra, não por unidade de objeto. Por exemplo Catálogo MARSUL 442 corresponde a todo o material recolhido na superfície do sítio RS-S-272. A amostra assim numerada, com tinta nanquim, era guardada em saco plástico e acomodada em caixa plástica, ou de papelão.
A cerâmica da coleta era analisada para criar tipos à maneira das Ciências Naturais; em sua formação o antiplástico formava o gênero e o acabamento da superfície a espécie do tipo. As bordas eram desenhadas e produziam modelos de formas de vasilhame.




Bordas de cerâmica com acabamento Corrugado do sítio Estádio do Aimoré, São Leopoldo (RS-06).



                 Algumas reconstituições de formas de Corrugado do mesmo sítio.
Havia maior cuidado com a documentação gráfica dos recipientes pintados, como ilustra a imagem seguinte.





Com os tipos assim formados se criavam séries, baseadas na semelhança tipológica, posição estratigráfica e datação radiocarbônica. Séries parecidas por seus tipos se constituíam em fases e o agrupamento destas, também por semelhança, em tradições. Miller atribuiu a cerâmica do vale à tradição Tupiguarani, subtradição Corrugada e, dentro dela, criou duas fases: a Maquiné, mais antiga e a Paranhana, mais nova.
Os componentes das séries, ou fases, quando colocadas no espaço, poderiam mostrar a distribuição, a sequência cronológica e a movimentação dos assentamentos representados nas amostras.
O texto publicado abrange os sítios levantados no vale com exclusão parcial daqueles usados nas mencionadas teses. Há também certa quantidade de coletas, que constam no catálogo, mas não foram encontradas no acervo. E se apresenta da seguinte maneira: primeiro há uma descrição do vale. Segue o estudo individual dos sítios, agrupados por áreas ao longo do rio. E fecha com uma síntese das informações conseguidas, as quais reproduzimos a seguir.
O rio dos Sinos orientou a ocupação indígena do vale. Os assentamentos, sob a forma de pequenas aldeias, encontravam-se distribuídos ao longo do curso, ocupando as primeiras elevações do terreno. Estas se encontravam na proximidade da água de arroios ou nascentes; raramente junto ao rio porque este é margeado por banhados com vegetação intrincada. Onde os banhados são mais expandidos, como na margem esquerda do baixo curso, não se localizaram assentamentos.
A implantação da aldeia se fazia de tal maneira que as famílias pudessem alcançar variados ambientes em suas atividades diárias. A distância entre os assentamentos era adequada para não esgotar o ambiente e evitar conflitos.
Os assentamentos se mostravam ao pesquisador como uma, duas ou três pequenas manchas escurecidas, com fragmentos cerâmicos concentrados, que eram circundadas por um espaço maior, menos escuro, no qual os restos eram mais dispersos. Não havia forma específica para a disposição dessas manchas.
A cerâmica das aldeias reproduz o padrão Tupiguarani, subtradição Corrugada, ou Guarani, na pasta, na técnica de produção, no acabamento da superfície, na forma e no uso inferido.
Através das características da cerâmica buscamos agrupar os sítios, mas não formamos fases. Agrupando-os pelo antiplástico alcançamos três conjuntos. O primeiro, que usa caco moído, desdobra-se na parte baixa e média da planície do rio, podendo representar a conquista do vale. O segundo, que usa areia fina e média, proveniente do arenito Botucatu, ocupa lombas e colinas mais afastadas do rio, no médio e alto vale e pode representar a expansão e consolidação do povoamento. O terceiro, que usa areão composto por grãos de hematita e fragmentos angulosos de quartzo e feldspato, provenientes da decomposição do basalto, está mais próximo da encosta do planalto basáltico; este era dominado pelo povo da tradição Taquara, com o qual as aldeias mantêm contato. Este terceiro conjunto pode representar um recuo para o interior escapando da escravidão e da missão religiosa.
A utilização do acabamento de superfície para agrupar os sítios foi menos eficiente, mas acompanha o exercício anterior.
A espessura das camadas arqueológicas nos assentamentos mostra que as casas tinham alguma estabilidade; a pouca variedade de artefatos, mostra um modo de vida simples, de pequenos chacareiros em meio à floresta.
O povoamento é considerado recente, entre o século XV e o começo do XVII.
 Em tempos históricos a região era ocupada pelos índios Carijó, da família linguística Tupi-Guarani, a cujos antepassados e contemporâneos os sítios podem ser facilmente atribuídos. A analogia direta com o modo de vida destes serve para iluminar os dados arqueológicos referentes à casa, à aldeia, à cerâmica, à subsistência e à organização da sociedade. No fim do século XX um grupo Mbya-guarani voltou ao vale criando aldeia de poucas casas, cujas imagens ajudam a cobrir de carne e osso ao esqueleto produzido pelos arqueólogos.
O término da ocupação guarani, no começo do século XVII, foi traumático, produzido por doenças trazidas pelo colonizador e pela transferência forçada dos moradores para São Paulo e Rio de Janeiro por ação escravista e missionária. Se, posteriormente, aparecem indígenas falando guarani, eles são estrangeiros para os ocupantes descritos neste trabalho.

Texto: Pedro Ignácio Schmitz, Jairo Henrique Rogge, 
Jeferson Aldemir Nunes, Ranieri Hirsch Rathke.
Imagens: Denise Schnorr e Acervo do Instituto Anchietano de Pesquisas


Referências bibliográficas:
DIAS, A.S. 2003. Sistemas de assentamento e estilo tecnológico: uma proposta interpretativa para a ocupação pré-colonial do alto vale do rio dos Sinos, Rio Grande do Sul. (Tese de Doutorado). São Paulo: MAE/USP.
DIAS, J.L.Z. 2015. A ocupação pelos grupos ceramistas das tradições Taquara e Tupiguarani do médio vale do rio dos Sinos e do vale do rio Paranhana. (Tese de Doutorado). São Leopoldo: UNISINOS.
EVANS, C.; MEGGERS, B.J. 1965. Guia para a prospecção arqueológica no Brasil. Belém, Museu Goeldi.
MILLER, E.Th. 1967. Pesquisas arqueológicas no Nordeste do Rio Grande do Sul. Publ. Av. M. Pa. Emílio Goeldi 6: 15-38.