sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Eu e a Arqueologia

 Sou Marcus Vinícius Beber, nascido em uma família de professores. Meu Pai, Alfredo, descendente de italianos do Vale do Itajaí, Santa Catarina, professor de História e Geografia na rede estadual do Rio Grande do Sul. Minha Mãe, Hildegarta, de ascendência germânica, nascida em Tapes, RS, professora de História tanto na rede estadual do RS como no Curso de História da Unisinos. 

Desde muito cedo eu falava em ser Historiador, fruto da vivência em casa, das conversas em volta da mesa, das pilhas de provas que meus pais tinham todo o fim de semana para corrigir, filhos de professores sabem bem do que estou falando. Ainda que muito bem avisado e alertado sobre as dificuldades da profissão, acabei teimando e, quando concluí o Ensino Médio, concorri a uma vaga ao curso de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul realizado entre os anos de 1988 e 1992 quando Colei Grau de Licenciado em História. Continuei ainda naquela universidade até o ano de 1995 quando colei o Grau de Bacharel em História. 

Minha passagem pela UFRGS levou-me ao primeiro contato com a Arqueologia, já no primeiro semestre de curso, no ano de 1988, assisti as aulas de Pré-História Geral com a Professora Silvia Moehlecke Copé, onde aprendi os primeiros passos desta ciência. No segundo semestre, já influenciado pelo primeiro contato, cursei mais duas disciplinas relacionadas ao assunto, Pré-história Brasileira e Arqueologia, ambas com Prof. Arno Alvarez Kern, cursos bastante instigantes, visto que o professor recém havia chegado de seus estudos de doutoramento no exterior. Neste mesmo semestre tomamos contato ainda com Prof. José J. P. Brochado que ministrou disciplina introdutória de antropologia.

O ano de 1990 foi particularmente importante nesta trajetória pois em março, mais precisamente no dia 06, iniciei minhas atividades como bolsista de Iniciação Científica no Instituto Anchietano de Pesquisas - IAP - orientado pelo Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz iniciando-se então uma longa relação profissional e de amizade.

A minha primeira atividade foi realizar a cópia dos painéis de arte rupestre do Projeto Alto Sucuriú, uma área que o IAP havia pesquisado entre 1985 e 1989. Daqueles tempos lembro de muitos colegas que circulavam pelos corredores, Maribel Girelli, Adriana Dias, Rodrigo Lavina, Marco de Masi, André Jacobus, André Osório, José Luís Peixoto, Fabíola Andréa Silva entre tantos outros alunos e pesquisadores que buscavam nas bibliotecas do “Pe. Ignácio” bibliografia atualizada para seus trabalhos. 




Bibliotecas do Instituto Anchietano no Antigo Prédio, no Centro de São Leopoldo, atual CCIAS, também conhecido como Antiga Sede da Unisinos. 



Em janeiro do ano seguinte (1991) participei de minha primeira pesquisa de campo, auxiliando a geóloga Ana Luisa Vietti nas escavações para coleta de dados para sua dissertação de mestrado sobre Reconstituição Paleoambiental na região do Banhado do Colégio, no município de Camaquã, RS. Neste mesmo ano, desenvolvo meu trabalho de Técnica de Pesquisa, disciplina obrigatória do curso de História da UFRGS que exigia a realização de um projeto de pesquisa. 

Minha escolha recaiu sobre o tema arqueologia, mais especificamente arte rupestre do Projeto Alto Sucuriú, tema que já vinha trabalhando desde meu ingresso no Instituto. A opção foi realizar a análise de um dos sítios da área, o mais significativo deles, MS-PA-04, conhecido como Casa de Pedra. A orientação do trabalho foi feita a quatro mãos: pela UFRGS, a responsável pela disciplina, a Profa. Celi Pinto, e pelo IAP, o nosso Orientador, Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz.

As experiências no Instituto Anchietano foram somando-se. Participamos no ano de 91 do "VI Simpósio Sul-Rio-Grandense de Arqueologia - Novas Perspectivas", na PUCRS, meu primeiro contato com a comunidade gaúcha de arqueologia, e em setembro do mesmo ano foi a vez da estreia nacional na "VI Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira", na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Fora eventos, participamos de trabalhos de campo no Projeto Corumbá no Mato Grosso do Sul, do Projeto Içara em Santa Catarina. 

Os Trabalhos de Campo foram memoráveis, experiências que carrego no coração a até hoje. As Escavações em Içara, Santa Catarina, um sítio com muitos restos de alimentação, sepultamentos, uma equipe de muitos bolsistas, estudantes, graduandos e pós-graduandos, além de todo o interesse da comunidade local que visitava, tal qual uma procissão o canteiro dos trabalhos. 

Outro grande trabalho foram as pesquisas no “Pantanal”, Projeto Corumbá, ter tido a possibilidade de conhecer, identificar e levantar um patrimônio arqueológico até então praticamente desconhecido, entrar em contato com toda uma cultura ligada ao rio, a pesca, a criação de gado, foi fundamental na minha formação de arqueólogo.

Março do 1992 marca a colação do Grau de Licenciado em História. Inicia-se então a preparação do projeto de pesquisa com vista ao Mestrado. O objetivo, a PUCRS, que abrira recentemente uma área de concentração em Arqueologia no seu Curso de Pós-Graduação em História. Era a oportunidade de obter a titulação de Arqueólogo. 

O projeto de Mestrado foi uma continuação da pesquisa iniciada na graduação e toda a vivência dos últimos anos no Anchietano. O objetivo foi estender a análise realizada em apenas um sítio para os outros três que faziam parte da mesma área. Durante o curso, fui aluno de Arno A. Kern, Klaus Hilbert, José J. Proenza Brochado, Paula Caleffi, Bartomeu Meliá e Pedro Ignácio Schmitz.

A orientação da dissertação coube a Pedro I. Schmitz e Arno A. Kern, em função de um acerto entre o PPGH-PUCRS e o Instituto Anchietano de Pesquisas, para que fosse possível a utilização do acervo depositado nesta última instituição.

Em março de 1995 iniciei como pesquisador, agora contratado, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos lotado no IAP com a função de auxiliar na informatização dos projetos, participar das pesquisas de campo e laboratório e no atendimento às escolas no museu.

Ao longo destes anos participei dos projetos desenvolvidos pela casa:  Projeto Ivotí - RS, Programa Arqueológico do Mato Grosso do Sul (Projeto Alto Sucuriú e Projeto Corumbá), Programa Arqueológico de Goiás no Projeto Paranaíba, Projeto Quintão- RS, Projeto Içara - SC, Projeto Arqueologia do Planalto Meridional: Campos de Vacaria, RS, Brasil, Projeto Taió, Projeto São José do Cerrito, Projeto Estâncias Missioneiras. 

Os trabalhos consistiam no levantamento, localização, prospecção, avaliação e escavação dos sítios. Em laboratório participei das atividades de análise e organização dos dados. 

No ano de 1998, a partir de agosto, comecei a trabalhar nas disciplinas de Arqueologia e Pré-história do curso de Graduação em História da Universidade do Vale do Rio do Sinos - UNISINOS. Atividade que desempenhei até julho de 2020

O ano de 2000 marca meu ingresso no curso de Pós-Graduação, nível de Doutorado, da UNISINOS. Grau que colei em 2004. 

Essa é um pouco de minha trajetória na Arqueologia, não vejo como uma profissão, mas antes uma forma de ver o mundo. A arqueologia, por definição, é uma das áreas das ciências humanas que mais nos convida a transitar entre diferentes áreas de conhecimento. Não é incomum você encontrar nas equipes de arqueologia profissionais da Botânica, Zoologia, Geologia, Cartografia, História, Física, Matemática entre outras. Essa diversidade, caracteriza a essência da Arqueologia, a Interdisciplinaridade, isso que a torna tão fantástica e atraente, pois, permite explorar o passado humano a partir de todas as suas facetas, tendo a certeza, que a realidade é muito mais complexa do que podemos perceber. 

Ainda mostro umas fotos de projetos em que participei.



Arte Rupestre - Sítio MS-PA-04 -  Alto Sucuriú-MS.



Casa Subterrânea em São José do Cerrito, 2007.



Escavação em São José do Cerrito, dezembro de 2013.




Sondagens em Arroio do Sal, maio de 2008.


Projeto Estâncias Missioneiras, Estância Queimada, julho de 2017.


Projeto Estâncias Missioneiras, Passo do Aferidor, julho de 2017. 


Texto e Imagens:  Prof. Dr. Marcus Vinícius Beber









sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Antigas estâncias de jesuítas - Parte II

ANTIGAS ESTÂNCIAS DE JESUÍTAS 3

 As estâncias jesuíticas de Córdoba, na Argentina e de Rio de Janeiro, no Brasil

Os jesuítas da Província do Paraguai mantinham em Córdoba, seu principal centro de formação, várias obras importantes: a Igreja, a Universidade, o Colégio interno de Nossa Senhora de Monserrat, e o Noviciado. Por ocasião da expulsão, havia 131 jesuítas em Córdoba, mais que no conjunto das missões indígenas. Grande parte da sustentação dessas obras vinha de grandes estâncias originadas de doações ou mercês reais, de legados particulares e de pequenas aquisições.

As fazendas cobriam amplos terrenos próximo à cidade, abasteciam as respectivas casas e ofereciam consideráveis volumes de mercadorias ao mercado colonial; com a venda destas, as casas cobriam outras necessidades, que não conseguiam produzir com os próprios meios. São, principalmente, as estâncias de Alta Gracia, de Caroya, de Santa Catalina e de La Candelaria, com produções diferenciadas. 

Cada estância era administrada por dois religiosos (um padre e um irmão, ou dois padres), ligados às respectivas comunidades jesuítas da cidade, que podiam ser ajudados por índios e mestiços contratados. Mas a mão-de-obra fundamental era constituída por numerosa escravaria de origem africana.

Criava-se gado de corte e de serviço. Plantava-se, em escala, trigo e milho, mais uvas, pêssegos, marmelos, romãs e figos. Jesus Maria chegou a ter grandes vinhedos com até 48.000 cepas para produção de vinho, outra estância tinha produção de pêssegos, com dezenas de milhares de pés. Para irrigação das plantações e dos pomares, e como força motriz para os moinhos de milho e trigo, eram construídas represas e se cavavam longos canais. Era importante para o mercado colonial o tecido de lã e de algodão produzido nos seus teares.

O melhor negócio era a criação e invernada de mulas, que eram vendidas para as estâncias de Santa Fé e de Buenos Aires ou para as minas de Potosi. Alta Gracia criava as mulas e Candelária as pastoreava antes da venda, rendendo anualmente entre 800 a 1.300 animais para o mercado.

A produção era feita por numerosa mão-de-obra escrava; seu resultado, na legislação eclesiástica do tempo, era considerado produto da terra e podia ser vendido para o mercado; mas era vedado aos religiosos comercializar o resultado de atividades de índios contratados, que também podiam ser muitos. Santa Catalina chegou a ter 406 escravos africanos para cuidar das 12.000 cabeças de gado, 6.000 ovelhas, 6.000 mulas, de movimentar os teares, a ferraria, a carpintaria, os dois moinhos e o monjolo. De maneira semelhante funcionavam as outras estâncias dos jesuítas de Córdoba.

Para abrigar os trabalhadores da estância se construía um grande quadrilátero, geralmente de dois pisos, com uma só entrada de fácil controle. Nele arranchavam os africanos e estavam instaladas as oficinas, a adega do vinho, o depósito dos alimentos e se guardavam os produtos. Um dos lados da construção era ocupado pela residência dos religiosos e pela igreja para a realização do culto, pois todos os trabalhadores eram cristãos. Algumas dessas igrejas foram construídas por famosos arquitetos jesuítas missioneiros e são muito bonitas. 

A moradia dos religiosos não só estava separada e sujeita a clausura eclesiástica, como era vedado aos jesuítas administradores visitar os escravos em seu trabalho.

As outras instituições urbanas dos jesuítas (os colégios) também se apoiavam em estâncias movidas a numerosa mão-de-obra escrava, em média mais de cem indivíduos, a única disponível.

Nota: O tópico foi escrito a partir de Carlos Page, 2016, El camino de las estancias. Las estancias jesuíticas de Córdoba y la Manzana de la Compañía de Jesús, Patrimonio de la Humanidad. 2ª. Ed. Córdoba, Argentina,especialmente do capítulo Las estancias jesuíticas, p. 103-132.

 

A Fazenda de Santa Cruz, do Colégio do Rio de Janeiro pertencia aos  jesuítas portugueses da Província do Brasil. Fazenda era o termo para estas estruturas no Brasil. 

O regime da missão indígena do Brasil era diferente daquele da Província jesuítica do Paraguai. As missões eram estabelecidas na proximidade do núcleo português e os índios trazidos para elas, para defender de invasores e piratas o litoral com suas cidades e para auxiliar os fazendeiros portugueses em suas atividades agrícolas. O fazendeiro podia solicitar à missão a cedência do número de índios necessários, por alguns meses do ano, comprometendo-se a pagar a jornada prevista em lei. Com isso, as missões não dispunham de abundante mão-de-obra para seus próprios trabalhos, não acumulavam e criavam patrimônio como as reduções espanholas, o que é manifesto quando olhamos o que sobrou das correspondentes sedes, onde sobraram igrejinhas sem arte, muito mal posicionadas na relação com os templos das missões espanholas. A missão era um serviço prestado a partir dos colégios nas cidades e sustentado por eles. Isto posto, pode-se entender o que segue.

 No século XVI, o rei de Portugal fundou (no sentido de sustentar) o Colégio do Rio de Janeiro como sede e sustento dos missionários que trabalhariam espalhados pelas Aldeias (missões) indígenas da costa do Brasil; a fundação previa abrigo e sustentação para 80 missionários. Além da fundação, o colégio tinha propriedades para ajudar a sustenta-lo.

Sua principal fazenda se denominava Santa Cruz. Através de doações e compras, ela chegou a ter 10 léguas de terra em quadra e se estendia desde a marinha até a Serra de Matacões, em Vassouras.

Em 1742 a Fazenda Santa Cruz tinha 7.658 cabeças de gado bovino, 1.140 equinos e 200 ovinos. Ela costumava fornecer 500 cabeças de gado bovino para sustento do Colégio, além dos bois necessários para os trabalhos próprios e de outras fazendas dos jesuítas. Ainda cultivava mandioca, feijão e algodão.  

A mão-de-obra eram 700 escravos de origem africana, que em sua maior parte se encarregavam do pastoreio. Outros ocupavam-se em amansar cavalos, e os mais industriosos, nas diversas oficinas da fazenda. As mulheres tratavam, sobretudo, da cultura da terra de que se tirava grande quantidade de farinha de mandioca e legumes. Na fazenda eram produzidas, ainda, telhas e ladrilhos e se extraía madeira de toda a espécie para construções. 

O trabalho era feito por escravos porque os índios das missões, em que trabalhavam os missionários, atendiam os fazendeiros portugueses ou demandas de autoridades. 

 A Fazenda de Santa Cruz formava um povoado, com o indispensável para uma vida civilizada: igreja, residência de sobrado, hospedaria, escola de ensino rudimentar e de catequese, hospital, cadeia, além de variadas oficinas de trabalho, como ferraria, tecelagem, carpintaria, olaria, casa de cal, casa de farinha, descascador de arroz, curtume, alambique, engenho de açúcar, estaleiro no qual se fabricavam canoas e até sumacas. 

O pessoal da fazenda distribuía-se por centenas de habitações. Só o núcleo central reunia 232 casas de escravos, em que essas famílias viviam independentemente. 

Sem fazendas e outros investimentos ainda maiores, como engenhos de açúcar, nenhum colégio do Brasil colonial teria condições de se manter.

Nota: O tópico foi escrito a partir de Serafim Leite, SJ 2004. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomos IV- V-VI. São Paulo, Edições Loyola, p. 433s.

 

 

ANTIGAS ESTÂNCIAS DE JESUÍTAS 4

 

Bolichos na Estância de Yapeyú, em Uruguaiana

O bolicho era uma instituição característica da Campanha gaúcha. Na beira do caminho, ele tinha funções alimentícias oferecendo cachaça, fumo, erva-mate, bolachas, salame, queijo, farinha de mandioca, talvez algum refresco e mais produtos para desapertar a fome e sede de um viajante a cavalo ou de carreta. Ele era também um lugar de eventual pousada, de encontro social e namoro furtivo da peonada com as moças da casa, de briga e luta.

Na pesquisa que o Instituto Anchietano fez sobre a antiga estância da redução de Japejú, ele encontrou duas construções missioneiras que tinham sido transformadas em bolichos de beira de estrada. Com a expulsão dos jesuítas em 1768, os prédios passaram a uma população lusa, especialmente militares das guerras do Prata, que continuaram a criar gado, agora em condições diferentes e propriedades mais divididas. 

Ao tempo dos jesuítas, os índios que trabalhavam na estância eram providos pela redução daqueles bens que não se produziam localmente (carne, alguma verdura, talvez um pouco de milho), fornecendo erva-mate, fumo, milho, roupas básicas para os índios, e artigos para o culto e para o sustento dos administradores religiosos. Com o sistema de propriedade introduzido pelo estado brasileiro após a retirada dos jesuítas, mudou a estrutura do campo, dividido agora em pequenas sesmarias com poucos proprietários, alguns peões e inúmeros desocupados vagamundos e biscateiros. O bolicho tornou-se, então, especialmente para os vagamundos sem emprego e pouso estável, um lugar de abastecimento ocasional de alimento e bebida, de pousada e encontro social à sombra de um umbu. 

Em nossa pesquisa encontramos dois antigos bolichos, instalados em construções missioneiras, um no primeiro casco da Estância San José, junto a uma estrada secundária, perto do rio Quaraí (Figura 1), outro no casco definitivo da estância (hoje, Redentora) na proximidade do Passo dos Moura no alto rio Ibirocai, junto ao Caminho Real (Figura 2). Ambos desativados. 

 

Figura 6. Antigo bolicho num dos prédios missioneiros do casco da Estância São José, junto ao rio Quarai. Três prédios paralelos formavam o conjunto habitacional da estãncia. O bolicho era administrado pelo tio do atual proprietário e morador.


Para entender o contexto e a história do bolicho do campo sirvo-me de Aníbal Barrios-Pintos em seus 400 años de Historia de la Ganadería en Uruguay (2011).

Durante la Cisplatina, al pacificarse el país, se extendieron [las pulperías] como mancha de aceite, a lo largo y ancho de todo el territorio nacional teniendo como sede las estancias de los vecinos principales (p. 167). (Durante a Cisplatina, ao se pacificar o país, os bolichos se estenderam como mancha de óleo por todo o território nacional [Uruguay, mas também o Rio Grande do Sul], tendo como sedes as estâncias dos moradores principais.)

Algunos pulperos fueron después proprietarios de estancias (p. 167). (Alguns bolicheiros foram posteriormente proprietários de estâncias.)

Segundo Zavala, "muchos hacendados se meten también a pulperos con lo que los peones con la ocasión de tener aguardiente a manos todos los días se ven precisados a hurtar para vestirse."  (p. 170). (Segundo Zavala, muitos fazendeiros se metem também a bolicheiros com o que os peões, para ter acesso cotidiano a aguardente, se veem obrigados a furtar para se vestir.)

Já em 1792 os bolicheiros volantes tinham-se tornado um problema, e uma Providência, ordenaba la extinción de las pulperías volantes de los mercachifles de la campaña, causa, según los hacendados, de que las noches de luna los cuadreros hicieran matanzas en los rodeos para luego vender los cueros. (p. 174). (A Providência de 1792 ordenava a extinção dos bolichos volantes dos mercadores ambulantes do campo, que, segundo os fazendeiros, era causa de em noites de lua os quatreiros fazerem matanças nas estâncias para logo vender os couros.)

Em 1831, o general Fructuoso Rivera prendeu muita gente entre vagos e gauchos, representados por correntinos, missioneiros, entrerrianos, desertores, alguns criollos e algum francês, italiano, português e vizcaíno, quase todos estes últimos com bolichos volantes (p. 170).



Figura 7. Antigo bolicho instalado no casco da Estância Redentora. As construções desta formam um quadrilátero com três lados em pedra canteada, não rebocada. O antigo bolicho, que forma o quarto lado (nos fundos da foto) é mais recente, provavelmente posterior ao período missioneiro. 

Os bolichos instalados em construções independentes ou ligados a estâncias, duraram mais tempo, mas perderam sua função com a melhoria das estradas e cavalo e a carreta foram substituídos pelo automóvel e o caminhão. 

Estas poucas citações servem para nos darmos conta do papel e da importância do bolicho do campo no século XIX e começo do século XX. Ele marcava a paisagem como parte da estrutura dos campos, com seus núcleos fechados no casco das estâncias e os solitários caminhos subindo e descendo coxilhas, sem sombra, sem abrigo, alimento, bebida e companhia para o cavaleiro ou carreteiro solitários. 

Nota: O texto foi escrito a partir de BARRIOS-PINTOS, A. 2011. 400 años de Historia de la Ganadería en Uruguay. Segunda edición corregida, aumentada e ilustrada. Con prólogo de Ana Ribeiro. Edición Cruz del Sur. 

 

 

Concluindo

 

A comparação entre as três amostras ensina que a estância missioneira segue um modelo próprio, que a separa das estâncias de Córdoba e da fazenda do Rio de Janeiro, especialmente pela sua mão-de-obra e a filosofia de trabalho. Nas reduções a estância é bem da comunidade, é atendida em serviço comunitário por membros que a sociedade sustenta. As estâncias de Córdoba e a fazenda de Santa Cruz são propriedade de comunidades religiosas, que compram sujeitos para seu manejo e os incorporam entre seus bens, junto com casas, terrenos e bois.  Como a legislação eclesiástica do tempo os considerava propriedade do colégio, e o fruto de seu trabalho um produto natural, estava liberado para venda; não assim o produzido pelo trabalhador assalariado. Os escravos eram bens importantes para os colégios poderem prestar seu atendimento gratuitamente e os administradores estavam atentos a que nunca houvesse falta deles. 

Com relação às missões também aparece a diferença entre a legislação espanhola e a legislação portuguesa. As reduções espanholas tinham alcançado um status de certa autonomia, funcionando as comunidades à semelhança de municípios, ao passo que as missões portuguesas eram pensadas como auxiliares na colonização.


Texto: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz

Imagens:  Acervo I.A.P.