segunda-feira, 18 de junho de 2018

Jesuítas entre os índios Carijó do sul do Brasil, segundo Beatriz Franzen

Beatriz Franzen (1934-2010)
Na primeira semana do mês de abril de 2018 ocorreu, na Unisinos, a XXV Mostra de Iniciação Científica e Tecnológica, onde os bolsistas do Instituto Anchietano de Pesquisas puderam apresentar seus trabalhos, vinculados aos projetos desenvolvidos do IAP.

Eu, Jefferson Nunes, orientado pelo doutor Pedro Ignácio Schmitz, apresentei um trabalho inserido no estudo do Guarani no Vale do Sinos, no qual venho pesquisando desde 2015, com o título JESUÍTAS, INDÍGENAS E EUROPEUS: UMA ANÁLISE DA TESE DE BEATRIZ VASCONCELOS FRANZEN NO CONTEXTO DO VALE DO SINOS.

Tese de Franzen, lançada pela Ed. Unisinos em 1999.
Nesta comunicação, explorei a tese de Beatriz Franzen, que foi professora por várias décadas na Unisinos, ajudando a fundar o programa de pós-graduação em História da universidade em 1987, hoje referência internacional na pesquisa acadêmica. Utilizei, na exposição, os capítulos do trabalho ligados ao relacionamento dos jesuítas com índios, autoridades e colonos.

A utilização da tese de Franzen na pesquisa do Guarani no Alto Vale do Sinos surgiu da necessidade de expandir a visão sobre os primeiros contatos entre os europeus e os Guarani, nos séculos XVI e XVII, buscando entender a desestruturação da sociedade indígena. Nesse contexto, os jesuítas foram extremamente importantes, por serem, em muitos locais, os primeiros brancos a entrar em contato direto com as comunidades nativas.

O Guarani (ou Carijó, como era chamado na época), teve destaque, por ser considerado pelos jesuítas como o índio mais dócil e de fácil trato para a evangelização. Sua grande profusão na porção sul do Brasil levou os padres a expandir, paulatinamente, suas incursões nessas terras, visando a catequização e a salvação das almas.

Essa expansão se deu, principalmente, pelo litoral sul brasileiro, por causa da proibição, tanto das autoridades locais quanto das europeias, da ida dos padres, pelo interior do Brasil, em direção ao Paraguai. Essa região estava desassistida nesse período, e os padres demonstravam interesse em expandir sua ação missionária para o local. 

Índios Carijó, em livro de Ulrich Schmidl, de 1599.

Isso, porém, deixava as autoridades temerosas de um despovoamento do litoral brasileiro, por uma possível corrida para o Paraguai em busca de riquezas, que traria efeitos dramáticos para a defesa do Brasil, atacado nesse período por piratas, franceses, holandeses etc. Além disso, o número pequeno de padres ocasionaria desassistência aos colonos e índios da região.

Por causa disso, os jesuítas voltaram sua ação missionária especialmente para as áreas litorâneas do sul do Brasil, sem avançar a linha do Tratado de Tordesilhas, o que garantiu um contato mais próximo com os índios Carijó, e a expansão da fronteira sul-brasileira. Com relações muitas vezes tensas com as autoridades, colonos e escravagistas, que roubavam índios dos padres para escravização, os jesuítas se colocaram, muitas vezes, na defesa dos índios, e no respeito a sua liberdade (que só seria completa em uma vida cristã).

Os relatos e cartas que os jesuítas deixaram desses contatos são fonte crucial para a compreensão das sociedades Guarani anteriores ao contato, e essa analogia direta tem nos permitido analisar os assentamentos Guarani no Vale do Sinos de forma mais ampla, percebendo outros elementos não facilmente perceptíveis nos registros materiais.

Também nos permite a percepção do impacto profundo que o contato com os europeus teve sobre os assentamentos indígenas, desestruturando todo o seu modo de vida, cultura e tradições, e impedindo a manutenção deste.

Com isso, adquirimos uma visão mais completa tanto da ação missionária dos jesuítas, quanto do modo de vida Guarani no Vale do Sinos, especialmente após os primeiros contatos com os europeus. Isso fica perceptível no mapa abaixo, retirado dos estudos de Eurico Miller na década de 60, e onde estão indicados o sítios por nós estudados.

Esses sítios estão relativamente próximos da "Aldeia do Caibi", grande aldeia que os jesuítas pretendiam instalar na região do Rio Caí, segundo Franzen. Isso demonstra o impacto da ação missionária em toda a região, incluindo o Vale do Sinos. Seus reais efeitos, porém, serão aprofundados na sequência das pesquisas.


terça-feira, 5 de junho de 2018

Diário do primeiro curso de arqueologia: o sambaqui do Toral 51, em Paranaguá, PR, 1962

Ao mexer nas gavetas por ocasião da transferência do Instituto Anchietano de Pesquisas da cidade para o Campus da UNISINOS encontrei este importante documento da história da arqueologia brasileira, do qual transcrevo uma parte. O texto inteiro, com fotos, pode ser encontrado na página do Instituto Anchietano de Pesquisas sob ‘Dissertações e Teses’.

Organização: Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA), Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná, por iniciativa do Dr. José Loureiro Fernandes, com apoio da CAPES.

Etapas: O curso se desenvolveu em duas etapas: de 4 a 11 de julho na Universidade do Paraná, em Curitiba, com aulas teóricas e práticas, e de 12 a 31 de julho de 1962 em Paranaguá, com escavações no sambaqui do Toral.

O sítio: O sambaqui do Toral 51, situado a 17 km do Paranaguá, 2 km da praia atual. Medidas: 44 m de comprimento, 36 m de largura, 5,6 m de altura máxima. Situado num alagadiço, que tinha sido mar no tempo da construção do sambaqui. Na mesma região existem muitos sambaquis de tamanho parecido, inclusive um com 21 m de altura (Guaraguaçu). Diversos sambaquis estavam sendo escavados pela Universidade do Paraná. O sambaqui do Toral 51 nunca o tinha sido.

Metodologia: O sambaqui, que estava coberto por grandes árvores foi desmatado e limpo. O horário de trabalho era das 7 às 17 hs, todos os dias. Depois de limpa a superfície, foi escolhida uma área de 12 m de lado, no topo do sítio. Ao longo desta linha assentaram-se quadrados de 2 m de lado até a base do sambaqui, no lado leste, onde se abria a antiga baía. Remoção da camada de húmus (10 a 15 cm de espessura) pelos quadrados demarcados, separando-se o material com etiqueta especial. Remoção de uma camada de conchas de 15 cm de espessura nos mesmos setores e separação do material com etiqueta própria. Abertura de uma trincheira na base leste e outra na base norte, procurando alcançar o nível natural da água.

Em laboratório à noite, em domingos e em alguns outros dias o material escavado era lavado, numerado, fichado e classificado por equipes.

Os componentes da equipe:

Dra. Annette Laming-Emperaire, do Museu do Homem, em Paris, diretora do curso. Dava aulas teóricas e orientou a pesquisa.

Profa. Margarida Davina Andreatta, do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná. Era a auxiliar imediata da Dra. Annette em todo o trabalho.

Profa. Maria José Menezes, do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná. Tinha realizado anteriormente escavações em três sambaquis e acompanhado a Dra. Annette na pesquisa na Patagônia Chilena e na Terra do Fogo; também acompanhava outros trabalhos do CEPA.

Prof. Oldemar Blasi, do Museu Paranaense, professor de Arqueologia. Responsável pela seção de Arqueologia do Museu Paranaense. Fazia pesquisas com professores americanos (Wesley R. Hurt) e franceses (Josef Emperaire e Annette Laming-Emperaire) em Lagoa Santa, em José Vieira, em Macedo, e pesquisas próprias em Vila Rica no Guairá (ocupação espanhola) e em Estirão Comprido (tupi-guarani ou itararé).

Prof. Walter F. Piazza, professor de Antropologia Cultural, Etnografia e Antropologia Social na Faculdade de Filosofia da Universidade de Santa Catarina. Era representante do DEPHAN no estado.

P. João Alfredo Rohr, S.J., professor de Química e História Natural no Colégio Catarinense, ex-reitor, organizador do museu do Colégio, começando a trabalhar em arqueologia no estado.

Prof. Pedro Ignácio Schmitz, professor de Antropologia, Etnografia e língua Tupi na Universidade do Rio Grande do Sul, com pequenos trabalhos em arqueologia e um estágio para língua guarani no Paraguai e para arqueologia na Universidade argentina de Córdoba.

Igor Chmyz, funcionário do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA) da Universidade do Paraná, cursando o terceiro ano de História nessa universidade. Representante do DEPHAN no Paraná, realizando pesquisas e acompanhando os trabalhos do CEPA.

Ondemar Ferreira Dias Jr., concluindo o curso de História na Universidade do Brasil, recomendado para o curso por Darcy Ribeiro.

José Proenza Brochado, aluno do terceiro ano de História da Universidade do Rio Grande do Sul.

Maria Andrea Loyola, estagiária do Museu Nacional.

Marilena Azevedo Fernandes Costa, concluindo o curso de História com especialidade em Antropologia em sentido amplo, recomendada por Prof. Egon Schaden.

Artur Ströbel, motorista da caminhoneta, que também fazia de cozinheiro no campo.

Resultados: Foram identificadas duas culturas arqueológicas.

a) A cultura encontrada na camada de húmus sem conchas, nos 15 cm mais superficiais. É a cultura da população que veio morar sobre o sambaqui já pronto e abandonado. Deles foram encontrados 18 sepultamentos; mais de 50 evidências de estacas, fazendo provavelmente parte de três choupanas; grande quantidade de pedra lascada ou parcialmente polida; material corante; objetos de osso e vértebras de peixe; coquinhos calcinados.

b) A cultura encontrada logo abaixo da camada de húmus nos 15 cm mais superficiais das conchas. É a cultura da população que construiu a última parte do sambaqui propriamente dito. Dela encontramos 12 sepultamentos, algumas evidências de estacas de choupanas, sinais do chão das habitações com muito carvão e cinza, fogueiras bem grandes, coquinhos calcinados e um bom numero de instrumentos de pedra e de conchas.

Reconstituição das culturas arqueológicas:

Cultura a: A choupana dos habitantes tinha uns 5 m de diâmetro, sendo construída com estacas finas de madeira (7 a 10 cm de diâmetro); a choupana tinha piso circular ou ovalado. Ao lado destas parecia haver pequenas choupanas com menos de 2 m de diâmetro. Os mortos eram sepultados nos arredores da casa em covas rasas, escavadas nas conchas do sambaqui ou na terra, numa profundidade não superior a 20 cm. Os corpos eram deitados de costas nas sepulturas, as mãos geralmente colocadas sobre o abdômen, as pernas recolhidas como quem assenta sobre os calcanhares. Os esqueletos mantinham a orientação oeste-leste, com a cabeça voltada para o nascente, ou o mar. Junto de diversos esqueletos havia ofertas: lâminas de machado grandes parcialmente polidas, peixe, coquinhos (para uma criança). Os moradores não parecem ter chegado a grande idade: não foi encontrado nenhum esqueleto de indivíduo idoso. Também não se encontraram esqueletos de crianças bem pequenas. A menor teria uns 10 anos. Não sabemos o que se fazia com os corpos de crianças. Como indica o grande número de sepultamentos, o grupo deve ter morado ali por bastante tempo. Também poderia ter sido um grupo relativamente numeroso, digamos de umas 30 pessoas.

Sobre a alimentação conhecemos estranhamente pouco: só encontramos algumas vértebras de peixe e alguns coquinhos calcinados. Sabemos apenas que não se dedicavam à coleta de mariscos, porque não deixaram conchas, nem pareciam ter sido caçadores ou pescadores, porque não apareceram ossos de animais terrestres ou peixes. Nem se encontrou carvão ou fogões, o que poderia indicar que os restos de alimentação estariam em outro lugar.

Dos instrumentos de trabalho foram encontradas numerosíssimas pequenas lâminas de machado, ou artefato parecido, (com menos de 5 cm de comprimento e largura), lascadas, que tinham sido encabadas. O gume estava gasto numa das extremidades, indicando a posição em que eram usadas, mas sem revelar sua verdadeira utilidade. Também havia algumas lâminas de machado semi-polidas, de tamanho bem grande, que eram encontradas normalmente nas sepulturas ou em outras covas. Registramos ainda quebra-coquinhos, grande número de lascas de basalto e um número quase infinito de lascas e seixos de quartzo, que tinham sido levados para o sítio e serviriam para alguma coisa.

Também o ornato era conhecido desse homem: encontramos boa quantidade de matéria corante vermelha e amarela. E em diversos lugares apareceram vértebras de peixe perfuradas, que teriam servido de contas de colar.

Estes moradores, quando se estabeleceram no sambaqui reviraram as camadas de conchas do mesmo, às vezes até um metro de profundidade.

Resumindo, pode-se dizer que se tratava de um grupo pacífico, sem armas reconhecíveis, sem cerâmica, nem pedra completamente polida, de cuja alimentação quase nada se conhece. Talvez fossem agricultores incipientes ou coletores. Quanto à idade em que teriam vivido não temos, por enquanto, dados certos.

Cultura b: Eram comedores de mariscos (ostras, berbigões etc) ao menos no tempo em que viveram no lugar. A falta completa de ossos de peixes parece indicar que não pescavam. Tinham suas moradias durante muitos anos no sambaqui, como mostra a superposição de camadas de conchas esmigalhadas, misturadas com carvão e cinzas, no lugar das antigas choupanas. Não se conhece a forma destas choupanas. Dentro delas e possivelmente também fora, faziam suas fogueiras para cozinhar os mariscos; nas fogueiras foram encontrados coquinhos calcinados. As ostras e o berbigão (anomalocárdia) eram então abundantes nos mangues próximos. Depois de comido o conteúdo, jogavam as conchas pelo declive do sambaqui, ao lado das choupanas. Estas camadas de conchas têm ali mais de 5 m de altura.

Os mortos eram enterrados ali mesmo, nas conchas, não se sabendo se fora ou dentro da choupana. Eram sepultados cuidadosamente, em covas pequenas e rasas, numa posição completamente dobrada: os joelhos sobre o peito, as mãos por baixo dos joelhos. Este modo de enterrar é bastante comum na América do Sul, desde os Andes até o litoral brasileiro.

Não parecem ter usado a pedra polida.

Sua cultura é diferente e mais antiga que a anterior.

As fotos e desenhos produzidos durante a expedição ficaram no CEPA da Universidade do Paraná, mas sobraram algumas, que mostro abaixo.

Paranaguá, 31 de julho de 1962.

Schmitz, o autor do diário, em 1962
Membros da equipe: Artur, Andrea, Padre Rohr, Brochado, Piazza
Profa. Annette Laming-Emperaire, no fundo Margarida Andreatta
O canteiro de escavação, com sepultamentos na parte frontal
Sepultamentos estendidos da cultura a
Sepultamento flexionado da cultura b