sexta-feira, 7 de maio de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO

 7.2 Experiências com arte rupestre, pinturas continuação

 

O estilo Serranópolis

 

Em Serranópolis, sobre o rio Verde, afluente do Paranaíba, em área de cerrado, onde a ocupação indígena começa ao redor de 12.500 antes do Presente (10.500 antes de Cristo), as pinturas cobrem as paredes de quarenta abrigos abertos e pouco profundos existentes em paredões e em torres residuais de arenito silicificado. Os sítios abrigaram populações caçadoras e coletoras durante milênios e deixaram espessas camadas com instrumentos característicos das tradições Itaparica e Serranópolis, junto com abundantes restos alimentares bem conservados. O conjunto permite reconstituir boa parte da vida dos antigos habitantes. 

As pinturas, feitas com pigmentos minerais, eram realizadas em superfícies mais fortemente silicificadas das paredes rochosas. Onde as paredes apresentam espaços de arenito pouco silicificado se produziam gravuras do estilo Pisadas, aparentemente pelas mesmas populações que faziam as pinturas. A faixa das representações não costuma ultrapassar a altura que o executor podia alcançar com o braço, quando pisado no chão ou sobre uma saliência maior de rocha. Elas eram mais bem-acabadas quando o pintor se encontrava em posição confortável e são mais estilizadas quando em posição forçada.

As pinturas, em tonalidades de vermelho e preto, compõem-se, predominantemente, de composições geométricas que lembram escudos e objetos de uso (cestos), e representação de animais, com predomínio de aves semelhantes à arara e à ema, mas também répteis, tatus e pisadas humanas. Alguns animais estão representados com todos os detalhes, mas rígidos, como numa coleção. Os humanos são menos presentes que os animais. As pinturas estão agrupadas e sobrepostas, mas raramente compõem cenas explícitas como em Caiapônia. 

No conjunto há elementos que lembram a tradição Geométrica de que falei acima, e raros elementos que lembram o estilo Caiapônia, de que falarei a seguir. Mas as pinturas de Serranópolis são uma composição própria, que denominamos estilo Serranópolis

O estudo da arte rupestre de Serranópolis está publicado em Publicações Avulsas do IAP 11. Arqueologia nos Cerrados do Brasil Central. Serranópolis II: Pinturas e Gravuras dos Abrigos Pedro Ignácio Schmitz. Colaboração de Fabiola Andréa Silva e Marcus Vinicius Beber, 1997.

Painel de pinturas do GO-JA-03. Serranópolis, GO.


O mesmo painel



Um recorte do painel acima



Painel de Serranópolis, GO-JA-03



Painel de Serranópolis, GO-JA-03




Painel de Serranópolis, GO-JA-15, em teto raso, onde a execução foi mais difícil. As cruzes lembram Caiapônia.

 

O estilo Caiapônia

 

A pequena distância de Serranópolis, também em área de cerrado, encontra-se Caiapônia, na bacia do rio Caiapó, afluente do Araguaia. Na extensa rampa arenítica de uma chapada, na localidade de Palestina, foram estudadas várias dezenas de abrigos e nichos com pinturas; também um paredão com gravuras do estilo Pisadas. Em razão da reduzida consistência das paredes de arenito as pinturas têm os contornos menos definidos e estão mais ameaçadas de desaparecimento, mas as gravuras estão bem.

Ao contrário de Serranópolis, onde os abrigos apresentam espessas camadas de ocupação milenar, em Palestina foram encontradas poucas camadas ocupacionais de alguma representatividade, mas são representativos alguns campos de seixos contendo artefatos indígenas antigos. Esta constatação deixa como elemento predominante do lugar a arte rupestre, mas sem conexão garantida com alguma cultura datada. A pintura está claramente no âmbito da tradição Nordeste, as gravuras, da tradição Pisadas.

As pinturas compõem-se de pequenas figuras, executadas com poucos traços, de humanos e animais em movimento, que produzem cenários e conjuntos significativos. Características são composições de homens com porretes caminhando um atrás do outro, ou se enfrentando em dupla; cenas de casal com criança, ou de homens carregando criança às costas; cenas de caça e de ritual; cenas de abastecimento juntando em pequeno espaço uma rede, um peixe, uma planta com tubérculos, um homem colhendo mel num tronco de árvore um grupo de homens caçando um veado com crias; típicas são ainda representações de peixes isolados, em fila, ou formando cardumes; cirandas de macacos, de emas, de emas e macacos; carimbos e cruzes. Os homens são representados com o pênis destacado; mulheres aparecem menos. As cores predominantes são tonalidades de vermelho de pigmentos minerais.

As pinturas cobrem todas as paredes e nichos que a mão humana podia alcançar, do chão, ou de uma protuberância rochosa (mesmo com perigo de despencar no vazio); tetos inalcançáveis com a mão eram salpicados jogando pigmentos contra eles. A qualidade da execução dependia da posição em que o pintor as realizava, em pé, agachado, com os braços esticados para a frente, para cima, para baixo ou para os lados. O conjunto de pequenos abrigos, nichos, tocas e passagens, com suas pinturas, até parece o resultado de uma gincana milenar, onde o desafio era pintar tudo, mesmo os lugares mais difíceis. 



Painel de Caiapônia, GO-CP-16

Painel de Caiapônia, GO-CP-29


 

Painel de Caiapônia, GO-CP-16


Painel de Caiapônia, GO-CP-33


Painel de Caiapônia, GO-CP-o



 


Caiapônia, representações humanas em diversos abrigos.

 

Considerações

As pinturas cobrem espaços de cerrado e de caatinga do Centro e Nordeste do Brasil, em variados estilos e tradições; são menos frequentes e representativas em outras regiões do país. 

Olhando, agora, o conjunto de pinturas e gravuras comentadas nestas postagens observamos que elas não usavam grandes acabamentos formais para transmitir suas mensagens, entretanto elas as transmitiam e eram diversificadas. Elas tornavam doméstico e seguro o lugar escolhido para acampar ou morar e o identificavam como de seu grupo e de seu território, no qual se podiam movimentar sem temor. Por outro lado, qualquer grupo estranho se daria conta, imediatamente, de que não estava em espaço de sua pertença. 

Os ícones eram instrumentos de memória entre gerações, lembravam eventos ocorridos, mostravam cenas do cotidiano como família, abastecimento, festa e ritual, exemplificavam o ethos do grupo, que podia ser mais sistemático, prescritivo e combativo, ou mais liberal, proativo, alegre, explorador. Eles formavam o bastidor da vida familiar e cotidiana, e o cenário adequado para a prática ritual, como mostram as camadas espessas de resíduos ocupacionais, que constituem a parte material desses sítios. 

As representações gravadas e pintadas que estudamos eram de acesso público. Qualquer indivíduo do grupo (homem, mulher e criança) tinha acesso a elas para as conhecer, modificar e complementar. Nelas estava registrada a vivência das gerações passadas e nelas qualquer um da geração presente podia deixar suas marcas para as gerações futuras; muitas eram simples e de fácil execução. Neste sentido, pouco se conhece em nosso estudo, de nichos de arte rupestre reservados a um usuário e vedados ao público, considerados espaços privativos de curandeiros e outras lideranças religiosas. Mesmo assim, toda arte rupestre parece carregar em si algo que a separa da simples materialidade; sua apropriação reúne conhecimento, sensibilidade, adesão ou rejeição.

 

Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz 

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