sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO

 4. O Pantanal

Depois do Programa Arqueológico de Goiás estendemos a pesquisa para o Mato Grosso do Sul, onde executamos dois projetos, em convênio com a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). 

O projeto Alto Sucuriú, no Planalto (1985-1989), onde continuava o cerrado de Goiás, deu resultados semelhantes: grupos de caçadores antigos com suas pinturas e gravuras, mas sem os agricultores ceramistas do centro de Goiás. Eram poucos abrigos em campos limpos e as condições de execução não eram boas. O resultado foi divulgado em duas dissertações de mestrado.

O Pantanal do rio Paraguai (1990-2001), que ainda não tivera pesquisa arqueológica válida, produziu conhecimentos muito importantes. Mostro pequenos aspectos.

O Pantanal do rio Paraguai, no município de Corumbá, fronteira da Bolívia, é formado pelas enchentes do rio, que, durante cinco a seis meses, permanecem estacionadas sobre os campos ribeirinhos, formando um pequeno mar de pouca profundidade. Quando as águas da enchente se retiram, entre maio e junho, permanece um conjunto de grandes e pequenas lagoas e os campos se transformam em pasto para milhares de vacas.

A paisagem da região não é formada só pelo rio, lagoas e campos. Na margem direita do rio se eleva um planalto residual, com enormes reservas de ferro e manganês, que alcança mil metros de altura. Na primeira foto apresentamos um quadro do ambiente: a grande lagoa de Jacadigo, os campos de sua margem com palmeiras e, ao fundo, o Maciço do Urucum, cujas ladeiras estão cobertas por matas. Também nosso pequeno barco para quatro pessoas.

Nosso trabalho foi estudar as populações que viveram nesse ambiente. 

Nas áreas sujeitas a alagação anual, que não permitiam cultivos, se desenvolveram populações baseadas na pesca, na caça e na coleta de produtos naturais. A natureza era rica em mamíferos terrestres, grandes aves, peixes, jacarés, moluscos aquáticos; as águas rasas das lagoas permitiam abundante colheita de arroz nativo, e as terras que sobressaíam das alagações estavam cobertas por palmeiras com grandes cachos de frutos de polpa doce e caroços cheios de gordura. 

A primeira ocupação da área, descoberta no pátio de uma escola, é de 6500 anos antes de Cristo; é um grande assentamento isolado sobre alta barranca do rio Paraguai, tendo à frente, na outra margem, uma rica planície alagadiça. 

A partir de 3000 antes de Cristo o povoamento começa a se estender por toda a planície alagadiça do rio, em dezenas, milhares de assentamentos, que são grandes e anuais na margem das lagoas e acampamentos temporários no campo alagado, ao longo de canais e afluentes do rio, em pequenas elevações não atingidas pela água. É que a população se movimentava com as águas do rio: quando os campos estavam secos, os recursos estavam nas lagoas, e pessoas ali se concentravam; quando as águas se espraiavam sobre os campos os moradores se moviam para onde se deslocaram os recursos. A canoa ficava sempre amarrada diante da porta da choupana. 

Aos poucos, essas populações desenvolveram sua própria cerâmica doméstica, simples e utilitária, à qual demos o nome de tradição Pantanal.

E nos lajedos de óxido de ferro e manganês do sopé da Morraria, à margem do campo alagadiço, produziram um impressionante conjunto de gravuras que fotografamos e copiamos cuidadosamente em lâminas de plástico. 

Elas formam cinco áreas, às vezes com centenas de metros de superfície, rodeadas e às vezes parcialmente cobertas por vegetação rasteira ou arbustiva. Algumas áreas são contínuas e outras são repartidas em conjuntos menores em meio a uma vegetação arbustiva. Algumas estavam mesmo cobertas por vegetação como observamos na limpeza de um dos lajedos.

As gravuras compõem-se de figuras (ícones) e sulcos, com profundidades de 5 a 7 cm e igual largura, produzidos por percussão e posterior fricção. Era um trabalho difícil e demorado, devendo o conjunto ser o resultado de sucessivas gerações. A tendência é que as gravuras cubram todo o lajedo livre de vegetação, não de forma dispersa e desordenada, mas com alguma estruturação, feita por longos sulcos que incorporam, envolvem ou cercam as figuras independentes: um desses sulcos tem ao redor de 200 m de extensão. Acreditamos que os lajedos gravados sejam lugares de rituais coletivos, onde os longos sulcos poderiam ser os guias para os passos e desenvolvimentos dos participantes, em suas caminhadas e danças. 

Gravuras com características semelhantes foram estudadas por nós no Alto-Tocantins, onde elas também cobrem um grande lajedo, como mencionamos em postagem anterior.   

No período colonial são encontrados nesse ambiente populações canoeiras que bloqueavam o rio para os desbravadores espanhóis e portugueses, e também índios a cavalo que defendiam os campos. Em termos linguísticos os primeiros povoadores seriam de grupo linguístico chaquenho; posteriormente entraram na área também populações do grupo linguístico aruaque. 

Em Albuquerque, em meados do século dezenove, franciscanos italianos organizaram os índios da região em missões, que tiveram curta duração por causa da invasão paraguaia na década de 1960. As altas cruzes de madeira de ambas as missões ainda estão no lugar, em meio a mata e capoeira. 

As terras férteis da encosta do planalto residual, cobertas por mata densa, eram ocupadas por populações de língua guarani, que os conquistadores denominavam de Itatins. Uma parte deles foi simplesmente escravizada, outros serviram aos colonos portugueses do povoado de Xerez e outros, ainda, foram juntados em reduções pelos jesuítas.

O projeto do Pantanal, que teve nove expedições anuais, produziu conhecimento considerável. Os resultados arqueológicos básicos foram publicados em Pesquisas, Antropologia. O projeto também deu origem a sete dissertações de mestrado, algumas delas publicadas. 

 

O ambiente: a grande lagoa de Jacadigo, à esquerda o campo com palmeiras e ao fundo o Maciço do Urucum. Nosso barquinho para quatro pessoas.



O campo alagado na fazenda Bodoquena com um bando de garças brancas e, no meio, um aterro coberto de mato com uma ocupação arqueológica.


 

Um corte estratigráfico num aterro coberto por palmeiras, na fazenda Bodoquena.

 



 Uma escavação maior na borda alta de um canal, em Albuquerque.


 

Sepultamentos que apareceram na escavação.

 


Vista parcial de um lajedo coberto com gravuras, que está sendo limpo para documentação.

 


Gravuras produzidas por fricção no duro óxido de ferro e manganês.

 

 

Gravuras delicadas.

 


Ícone.

 

 

Outro ícone.

 


Mais um ícone.



O conjunto organizado de gravuras num espaço limitado por vegetação. A escalinha, à esquerda na figura, é de 42 cm.



O entrevero organizado de gravuras no centro de um grande lajedo. O sulco que atravessa o conjunto se estende ainda para um lado e o outro, formando outros conjuntos e mede um total de duzentos metros. A escalinha, à esquerda na figura, é de 42 cm.



Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz

 

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