sexta-feira, 12 de março de 2021

PEDRO IGNÁCIO SCHMITZ, APRENDIZ DE ARQUEÓLOGO

5. No Agreste Nordestino 

A participação neste projeto resultou do convite do reitor da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco) para acompanhar o trabalho de Jeannette Maria Dias de Lima, recém contratada pela universidade.

Jeannette vinha escavando um sítio com numerosos esqueletos no município Brejo da Madre de Deus, no agreste pernambucano, um pouco além de Caruaru. Brejo é a capital nacional da cenoura e, na Semana Santa, se faz ali uma famosa representação da Paixão de Jesus. 

O abrigo em escavação se localiza na baixa encosta da Serra granítica do Estrago, a 650 m de altitude sobre o nível do mar, a pequena distância de uma lagoa de água permanente, posteriormente drenada para plantação de cenoura.

Durante o ano de 1982 e a primeira parte de1983, Jeannette vinha fazendo escavações no abrigo, em fins de semana, ajudada por alunos da universidade. Foi quando o reitor me convidou a participar na saída de dezembro de 1983, que durou uma semana. 

Nas saídas anteriores, Jeannette e alunos vinham realizando escavações a partir da linha de goteira, tendo encontrado 30 sepultamentos, não muito bem conservados porque apanhavam o respingo da chuva junto da boca. Na expedição de dezembro, quando continuamos a escavação para o interior do abrigo, encontramos 27, que estavam mais bem conservados. Na oportunidade recolhi carvão para datação das principais camadas que tínhamos exposto. Elas mostraram que, antes de se tornar cemitério, o abrigo tivera ocupações antigas de caçadores e coletores, que tinham deixado densas camadas de cinzas. 

As primeiras ocupações, acampamentos de caçadores-coletores são do final do Pleistoceno, de 10.000 a 9.000 anos a.C. Durante o Ótimo Climático, 5.000 a 3.000 a.C., o abrigo parece não ter sido ocupado. Após o Ótimo Climático retornam os acampamentos, agora ocasionais, de caçadores e coletores. E nos três primeiros séculos depois de Cristo o abrigo se torna cemitério de uma população que tinha sua aldeia na proximidade, provavelmente ao pé da encosta, junto à lagoa. Parece não ter havido nova ocupação depois do cemitério.

O pequeno abrigo mostrava ocupações antigas e muitos sepultamentos e o trabalho executado até então não correspondia a sua importância. Por isso foi programada uma temporada mais longa, de trinta dias, para a realização de trabalho mais calmo e mais técnico. Isto ocorreu no mês de julho de 1987, quando concluímos a escavação do núcleo central e sondamos as bordas laterais do abrigo. Apareceram mais 23 sepultamentos. 

Ao todo foram escavados 80 esqueletos depositados em covas individuais. Dos 58, cujo estado de conservação permitiu classificação por faixa etária e sexo, 20 foram classificados como indivíduos imaturos, ou não adultos sem identificação sexual, 13 como adultos femininos, 25 como adultos masculinos. Parece uma boa amostra do que teria sidoa amostra da população do povoado, que ali foi depositada durante três séculos.

Os mortos estavam depositados em covas individuais forradas com fibras vegetais, envoltos em esteiras ou palha, acompanhados de seus ornamentos (colares de sementes, de contas de osso ou de amazonita), instrumentos (duas flautas de osso longo de mamífero) e armas (um tacape). Para o sepultamento, os membros superiores e inferiores eram dobrados sobre o corpo, este envolvido em esteira ou palha e fortemente amarrado por grossas cordas, resultando em fardo mais cômodo para o transporte. Sepultamentos de imaturos podiam estar protegidos por pedras formando nichos; um estava depositado num cesto; outro numa espata de palmeira. 

Como o espaço era pequeno, acontecia que um sepultamento perturbasse um anterior; seus ossos eram, então, reunidos num cesto, em boa ordem e novamente depositados. Tudo mostra o cuidado com que os vivos tratavam os seus falecidos. Como arqueólogo, mais de uma vez, me emocionei, mexendo com sepultamentos de crianças, quando tentava expor os pequenos corpos, tão cuidadosamente sepultados por seus familiares. 

O abrigo era seco, excetuando a parte frontal onde respingava a chuva e um ponto ao fundo por onde entrava o fluxo vindo da encosta. Na parte seca, junto com os esqueletos, ficaram preservados muitos outros elementos: as forrações da cova, as esteiras que envolviam os corpos, colares que usavam, os cabelos e seu corte, o cérebro seco num crânio e muito restos fecais na bacia dos mortos. A boa conservação possibilitou a execução de muitos e variados estudos, biológicos, sociais e culturais.

O material foi recolhido ao museu da UNICAP, onde uma parte ficou exposta. Alguns esqueletos tiveram de ser devolvidos ao museu do Brejo porque a umidade do litoral os estava prejudicando. 

Os primeiros trabalhos foram divulgados na Revista Symposium da UNICAP. Depois, Jeannette escreveu a dissertação a partir dos materiais dos dois primeiros anos de escavação e a defendeu, rm 1986, na UNICAP. Em 2001 redigiu uma tese de doutorado na Universidad Autónoma de México, usando todos os materiais recuparados, mas não a concluiu, vitimada por um câncer.

Para não se perder o precioso material, em cuja escavação havia participado, selecionei elementos válidos de artigos, da dissertação e da tese incompleta e publiquei em Pesquisas, Antropologia 69. Mais tarde completei as informações (o diário de campo), que foram publicadas na Revista Clio, Série Arqueológica da UNICAP. Com isso o precioso trabalho não se perdeu.

 A referência básica que uso é DIAS DE LIMA, J.M.; SCHMITZ, P.I.; MENDONÇA DE SOUZA, S.M.F.; BEBER, M.V. 2012. A Furna do Estrago no Brejo da Madre de Deus, PE. Pesquisas, Antropologia 69.

Com algumas fotos de 1987 procuro ilustrar a forma de sepultamento da Furna do Estrago, no Brejo da Madre de Deus.


A paisagem: na frente, o lugar da antiga lagoa; no fundo a Serra do Estrago, em cuja baixa vertente se encontra o abrigo estudado.

 

Os blocos de granito rolados da encosta. No grande bloco da direita está o abrigo.


O pequeno e raso abrigo e a equipe de escavação de dezembro de 1983.

 

As camadas arqueológicas: camada 7 = 10.000 a.C.; camada 5 = 9.000 a.C.; os sepultamentos = entre 100 e 300 anos depois de Cristo. As covas se sobrepunham e penetravam profundamente nessas camadas.


A distribuição dos sepultamentos no espaço escavado. Fonte: Dias et al., 2012.

 

O sepultamento 87.23, adulto, masculino, ainda com seu envoltório de palha.

 

O mesmo sepultamento 87.23 sem o envoltório de palha, a cabeça envolta numa rede ou cesta de trançado muito aberto. Usava colar com 15 contas de osso de ave, mais 7 contas de molusco terrestre.

 

Esqueleto 87.6, adulto, masculino, o corpo coberto por ocre vermelho, envolto em esteira e deitado sobre mais outra esteira e mais um forro de palha. Usava colar de 78 contas de ossos de ave.

 

O mesmo sepultamento 87.6, mostrando melhor as duas esteiras e mais o forro da sepultura.

 

Esqueleto 87.3, de criança, deitado em cova forrada por fibras vegetais e cercada por pedras. Usava colar com 5 contas de osso de ave.

 

Restos do cesto no qual foi sepultada criança (87.2), que usava colar com 5 contas de marisco marinho.

 

Sepultamento 87.18, re-depositado, de adulto, masculino, colar com 3 contas de molusco terrestre, 5 contas de osso de ave e 3 contas de amazonita. 


Texto e Imagens: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz

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